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Cultura

Prisioneiras, retratos de uma sociedade inerte

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Foto: Laura Santos

Prisioneiras, escrito por Drauzio Varella, faz parte, junto com Carcereiros e Estação Carandiru, da trilogia de livros que conta a experiência dele como médico voluntário, há mais ou menos 30 anos, no sistema prisional brasileiro. Nesta obra, compartilha histórias ouvidas em mais de uma década, sobre mulheres na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo.

Somos apresentados à estrutura do presídio e aos ritmos que compõem seus dias, para só então, conhecermos melhor as mulheres que lá estão e os motivos que as levaram a estar ali. Algo reafirmado diversas vezes é o fato de que Drauzio se coloca sempre como médico, e nunca juiz. Essa ausência de julgamento é talvez um convite implícito para nós. Sua escuta certamente fez a diferença em inúmeras vidas, antes trancadas e esquecidas, agora ouvidas.

Nos capítulos iniciais a obra trata da solidão. É impossível que não haja um comparativo entre as prisões masculinas e femininas, tanto por ter conhecido de perto as duas realidades, como porque as diferenças são gritantes. Quando um homem vai preso, é comum que suas mães, esposas e namoradas o visitem constantemente. Nos dias de visita acampam em frente aos presídios para garantirem mais horas ao lado deles, fazem filas enormes à espera do reencontro. 

Quando uma mulher vai presa, em boa parte dos casos por servir como ponte (levando drogas)  para o companheiro na cadeia, são esquecidas pelos familiares, imagens como as das filas gigantescas nas portas são extremamente raras. E o crime que as leva para trás das celas é cometido em grande parte a pedido de seus parceiros afetivos, que jurados de morte colocam em suas mulheres a responsabilidade de salvá-los de suas dívidas. Os que antes juraram amor eterno, são os primeiros a arranjar um novo relacionamento com a ausência de suas companheiras fiéis.

Foto: Laura Santos

Mas o que acontece se a mulher fizer o mesmo? Decidir seguir em frente e recomeçar a vida ao lado de um novo homem? Provavelmente serão assassinadas a mando de seus ex namorados, uma ordem que atravessa os muros das prisões. 

Uma das leis mais discriminatórias e odiosas do mundo do crime é a ameaça de morte que mulher de bandido sofre caso o abandone na cadeia. Evidentemente, a recíproca não é verdadeira: o machismo egocêntrico confere ao homem o direito de esquecer a companheira, mesmo quando está presa por um crime cometido por ele. [Trecho retirado do livro].

Um outro aspecto abordado pela obra é o fato de que o  Estado não consegue estabelecer a paz dentro dos presídios, os Comandos formados pelos próprios prisioneiros se mostram mais efetivos, por mais incrível que isto possa parecer. E mesmo que as mulheres tenham autonomia para resolver desavenças em seu território, problemas maiores de comportamentos são levados para outro tribunal, composto exclusivamente por homens que ditam as regras, todas aprendidas através da tradição oral, das prisões masculinas. Essas leis não são formuladas a base do perdão, um erro pode custar a vida, e essa vida serve de exemplo para que outras não façam o mesmo.

A maioria dos crimes gira em torno do tráfico de drogas, embora algumas também cumpram pena por outros mais violentos. E como não falar da violência? Em nenhum momento o livro esconde ou ameniza os erros cometidos, por homens ou mulheres, o não julgar é simplesmente pelo fato dessa não ser a nossa função, não foi a do escritor enquanto médico, não é a nossa enquanto leitor. O que podemos fazer juntos, enquanto sociedade, é refletir sobre os contextos. 

Foto: Laura Santos

Não é uma obra fácil de ler, pois é muito crua, nos coloca de cara com o nosso pior. São pessoas que estão desde a infância cercadas pela violência, seja em seus lares, sofrendo todos os tipos de abuso imagináveis, largando os estudos antes dos 10 anos de idade para poder trabalhar e levantar algum dinheiro para o sustento da casa. Meninas que aos 12 anos já estão sendo mães e aos 28 avós, mostrando o quão difícil é interromper o ciclo.

Mulheres que presas, carregam ainda a culpa de não acompanhar o crescimento de seus filhos e não impedir que sigam os mesmos caminhos dos pais. Mulheres que têm seus filhos na cadeia e passam apenas os 6 meses da amamentação com eles no colo. Para depois os verem em casas de familiares ou espalhados pelo mundo.

Crianças que se tornam pais cedo demais e provavelmente nunca retornarão aos estudos, pois as prioridades agora são outras. A gravidez na adolescência, ou antes disso, é uma verdadeira epidemia nas periferias do país, como é exposto no livro. Ver seus melhores amigos envolvidos com algum tipo de atividade criminosa, andar com eles. Um ambiente não saudável, desde a infância, criando uma atmosfera que no futuro mostrará os frutos dessa violência e falta de assistência e limites.

Presídios com superlotação, condições subumanas. A solução da violência estaria realmente apenas nas prisões? Ou na construção de mais prédios?

Foto: Laura Santos

Na década de 1990 o número de presos no Brasil era cerca de 90 mil pessoas, em 2016 passou a ser 622 mil, (números extraídos de Prisioneiras). Um aumento de quase 700%. E o questionamento latente: você acredita que a violência no país diminuiu sete vezes? 

É uma leitura fundamental para todos que se permitem mover através das forças das relações humanas. São capítulos curtos de uma obra muito mais longa do que aparenta ser, uma profundidade, para mim, até então imensurável. Páginas que nos tiram do nosso estado confortável e por esse motivo são de extrema importância. 

Prisioneiras pode ser encontrado aqui: https://amzn.to/2Nuo2SN

Este texto é uma parceria com a Quando Nuvem

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