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Sociedade

Policiais de esquerda? Eles existem

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Espalhado em 20 estados, grupo progressista defende segurança pública aberta aos direitos humanos

Pedro Chê dirige movimento que, no RN, tem de 80 a 100 policiais. (Foto: Agência Fotec)

Pedro Paulo Mattos, 34, conhecido como Pedro Chê, logo entendeu que algo precisava mudar dentro do seu trabalho. Policial civil há oito anos, ele não entendia a cultura de violência que permeia a segurança pública. Historiador e estudante de direito, entrou na corporação com o sangue nos olhos: “queria prender geral”. Mas “dentro da lei”, enfatiza. No entanto, percebeu que as mazelas sociais rondavam a sociedade, e consequentemente reforçavam a criminalidade. Conheceu o Movimento Nacional Policiais Antifascismo, que pede por uma “Polícia cidadã e amiga da sociedade”, como aponta o site da organização. Hoje, é uma das vozes ativas da entidade no Rio Grande do Norte. Com os “camaradas” — policiais civis e militares estaduais e federais, bombeiros, guardas municipais e policiais penais —, encontrou seu lugar.

No meio do furacão formado recentemente pelos protestos das torcidas organizadas e embalado pelas mortes de pessoas negras, a pesquisadora Raquel Medeiros faz uma ressalva. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ela diz que “é preciso ver o papel do policial dentro do contexto mais amplo da política estatal, que tira a autonomia do profissional e o coloca na posição de um mero cumpridor de ordens. O policial deve ser visto como um trabalhador, um cidadão”, afirma.

Para a doutoranda, não se trata de isentar os policiais por possíveis erros. “A discussão deve girar em torno da estrutura que sustenta as corporações policiais, que é um Estado repressor para a maioria da população e defensor dos interesses das classes mais altas socioeconomicamente”. Segundo Medeiros, “o policial de base não participa da elaboração das políticas; ele as obedece”. “Por isso, essa ‘política de extermínio’ adotada pelo Estado deve ser combatida por toda a sociedade, inclusive pelas instituições policiais. A polícia não é um agente para o extermínio da pobreza ou de quem pensa diferente; ela deve garantir o direito de todos os cidadãos”, pontua.

Num caminho semelhante ao da pesquisadora, Pedro Chê defende o policial como trabalhador ao conversar com o Elo Jornal. Ele rechaça ainda rechaça o lema “bandido bom é bandido morto”, afirma que há valores fascistas dentro das Polícias e critica a falta de reflexão entre os agentes públicos. Mas também reclama dos gritos pelo fim da Polícia Militar —comuns em protestos de esquerda—, pela didática negativa que a frase carrega. Sobre os casos do menino João Pedro e do americano George Floyd, ambos mortos após ações policiais, diz que há “de tudo um pouco”, do despreparo ao preconceito. E reclama da visão, impregnada na população e nas polícias, de que o “inimigo” é “o jovem negro da periferia, não o cara do colarinho branco”.

Quem são os policiais antifascismo e o que vocês propõem?

Pedro Chê: É um movimento em defesa da democracia e dos direitos humanos. A gente tem pautas muito específicas, por exemplo: a desmilitarização é um ponto central pra gente, o fim da guerra às drogas e uma política antiproibicionista, em que a saúde pública se governe dessas questões. A gente também pede pela carreira única, porque aqui no Brasil a gente tem polícias em que você tem duas formas de ingresso: ou ingressa na base ou nos cargos de gestão, que cria bolhas dentro da polícia, que tanto dificultam o diálogo interno como também externo e cria uma hierarquização de classes. Isso favorece o abuso e o corporativismo e é um dos pontos que a gente luta. A gente também quer uma mudança na cultura policial, [no modo] como se pensa a polícia. A gente fala de desmilitarização e ela não é só estrutural, é também cultural. A gente não quer acabar com a polícia militar, mas acabar a ligação dela com o Exército e com o regime jurídico-militar. E, dessa forma, propiciar com que outras polícias deixem de beber dessa fonte. Você poderia me dizer: “a polícia militar é só uma, as outras são civis”. Não é assim que funciona exatamente, porque a polícia militar é a grande produtora de cultura policial, e ela irradia isso para as outras. E aí acaba que a polícia civil, guarda municipal, polícia federal, polícia rodoviária federal, de alguma forma bebem dessa cultura produzida lá e que a gente entende que é ineficiente. Ela não é só incompatível com o mundo civil, mas também é ineficiente no trato da segurança pública.

Devido, especialmente, a casos recentes, ser policial e ser antifascista são vistos praticamente como antônimos. Como você encara essa visão?

Pedro Chê: Como um problema de percepção. Nossas funções, como a defesa da integridade, dos direitos humanos, deveriam ser valores assumidos de maneira inquestionável. Direitos de todos, não de alguns selecionados. Mas infelizmente não é o que acontece. Por exemplo, os direitos humanos são mal quistos, e é expressado inclusive por policiais. Dizem que são direitos humanos de bandidos, o que é uma deturpação terrível. Direitos humanos são para todos, inclusive para os bandidos, para as vítimas e os policiais. E o antifascismo é uma mensagem ainda mais forte, porque não apenas reclama, mas também denuncia. Denuncia que há elementos e valores fascistas que infelizmente permeiam o imaginário policial. Então se os direitos humanos já são mal quistos, com relação ao antifascismo fica ainda pior.  

Querendo ou não a Polícia é um aparelho do estado, e como aparelho do estado é acionada para reprimir manifestações e manter a ordem. Nisso, acabam ocorrendo frequentemente confrontos em protestos de sindicatos, trabalhadores etc. É possível conciliar a militância e o trabalho?

Pedro Chê: Você pensa que a resposta é complexa, mas é bem simples: ler! O que a gente advoga é que ambos os lados cumpram com suas partes. E isso às vezes parece que não é fácil. No meu local de fala, enquanto policial, há uma perspectiva que vem desde as formações, de que certas figuras são inimigas, e uma dessas figuras são os manifestantes, as pessoas de esquerda. Até porque o policial normalmente tem uma mentalidade conservadora, e externa isso. Isso é de um antiprofissionalismo terrível. É vedado ao bom policial ir com qualquer preconcepção a respeito do movimento que vai acontecer. Seja pró-Sérgio Moro, seja pró-Bolsonaro, seja pró-Lula, pró-PSOL. Ele deveria ir lá, e a gente pede isso, que vá lá como profissional. Então, ele vai ter que zelar por algumas questões, e que zele de acordo com a proporcionalidade do que se tem. Que não seja mais um agente instigador. O que não é incomum ter, em manifestações, policial fazendo a segurança e fazendo isso aqui [faz o sinal de arma com as mãos], com a cara fechada para os manifestantes. Isso passa certos recados. Agora é claro, a gente tem o local de fala e o local de trabalho. A gente também pede aos manifestantes que mantenham a ordem. Mas, caso essa ordem não seja cumprida, que se caso a polícia for atuar, que entre dentro do aspecto legal. A proporcionalidade da força é uma palavra muito cara nesse momento. Quando se é necessária a intervenção policial, ela não é libertina, tem parâmetros, e eles conhecem os parâmetros. Mas muitas vezes esses parâmetros não são cumpridos. Veja, o caso da mulher de São Paulo com o bastão [taco de beisebol], aquilo por incrível que pareça é parâmetro. Mas eu faço a pergunta que todos fazem: ‘para os dois lados funciona desse jeito?’ Tem que funcionar!

Como os policiais antifascistas são vistos pela esquerda e pela direita?

Pedro Chê: Aqui no Rio Grande do Norte a gente é bem visto. A gente conseguiu uma militância bem expressiva, pôde ter a oportunidade de fala. Porque isso é muito caro, para os caras entenderem o que a gente tem de diálogo. Mas a gente entende que a esquerda tem muitos problemas com relação à percepção da segurança pública. E eu não estou sendo corporativo, estou sendo técnico. Por exemplo: a galera pede pelo fim da polícia militar. Não que eu tenha qualquer relação contrária a isso. Mas veja, por princípio, isso tem alguns erros. Primeiro, deveria ser pedindo desmilitarização. Segundo, querendo ou não, o policial militar é um trabalhador e tem uma relação de afeto com a profissão, como cada um tem. O professor gosta de lecionar, tem uma relação com sua escola e seus alunos. O cobrador de ônibus tem uma relação com o ônibus e outros trabalhadores do transporte rodoviário. O policial militar tem também uma relação com a sua farda, com sua perspectiva militar. E quando você fala “eu quero o fim da Polícia Militar’”, você está quase dizendo: “tudo o que tem aí não presta para nada, inclusive você [o policial]”. Então não é uma abordagem receptiva. O que a gente tem que fazer, enquanto esquerda, é falar: “cara, esse regime te oprime e faz com que seu serviço não seja adequado. Que tal a gente pegar uma perspectiva que seja melhor para você? Que tal a gente acabar com a militarização e você não ser tão açodado dentro dos batalhões?”

Qual o tamanho do movimento hoje dentro das Polícias? É possível pautar, dentro da corporação, uma política menos violenta?

Pedro Chê: A ideia é que a gente vá sempre ser minoria, nessa realidade posta. Nós somos o que eles chamam de cavalo de troia. E a gente tem um local de fala importantíssimo dentro das instituições, mesmo que com raiva. Veja, quando acontece qualquer coisa dentro das polícias, eles perguntam o quê que o os “malditos dos policiais antifascismo vão falar”. Então a gente já tem um espaço político dentro, por mais que seja visto dessa forma negativa. Nossas pautas são conhecidas por eles, e eles tem que discutir isso mesmo que seja para xingar. E a gente entende que é uma evolução. Tem colegas que são mais apressados e falam: “que evolução?”. Como não, cara? Se antes a gente tinha um absolutismo da percepção de bandido bom é bandido morto, e a gente conseguiu quebrar, é evolução. Não precisamos pular de um estágio de completa inanição para ser maioria. A gente já quebrou o monopólio do bandido bom é bandido morto. E vamos tentar progredir em outros assuntos.

Alguns casos recentes trouxeram atenção novamente ao papel da polícia contra a negritude. No Rio, João Pedro, de 14 anos, teve a casa alvejada mais de 70 vezes e foi morto durante uma operação das polícias Federal e Civil. Nos EUA, George Floyd faleceu depois de ser asfixiado por um policial branco. Você enxerga essas situações como despreparo ou preconceito? A polícia recebe um preparo adequado para lidar esses casos?

Pedro Chê: De tudo um pouco. Você tem a questão do preconceito, do racismo estrutural, que está dentro das instituições e a polícia não está fora disso. E na polícia a coisa ainda fica pior, porque como é uma cultura militarizada, tem a perspectiva do inimigo. O inimigo quem é? O infrator. O infrator, para a concepção geral da população, é aquele jovem, negro, de periferia. Não é o cara do colarinho branco. Até porque o policial raramente tem acesso ao cara do colarinho branco por uma simples razão: é muito difícil chegar a ele. Teria que ter uma estrutura voltada para chegar a ele, e a estrutura é voltada para o cara que faz aviãozinho, que faz o pequeno tráfico e pequenos furtos na periferia.

Tanto que teve o policial que foi humilhado por um morador de Alphaville [condomínio de luxo de São Paulo].

Pedro Chê: Ali é um despreparo que vai além da questão operacional. É um despreparo e uma certa submissão à ordem vigente. Porque aquilo não acontece na periferia. E não era para acontecer em Alphaville. Com a conduta daquele cidadão, o policial era para ter tomado outras providências. Ele é um agente público. Não é que ele tem que se revestir de autoritarismo e de uma capa de super-homem. Mas havia uma perspectiva de um ilícito acontecendo ali, e o cidadão estava vociferando de uma forma que já cabia ser enquadrado penalmente. Então não faz mal reter e levar à delegacia. Mas é um outro despreparo que vem da submissão. Porque no militarismo o cara é acostumado a abaixar a cabeça. E ele leva esse mesmo enquadramento para a rua. Ele pode ver, pode exemplo, um cidadão comum como subalterno. Como ele também pode ver um cidadão com certa condição social como superior e ter medo. Fora que vem a questão moral, em que o policial não é incentivado a ter uma reflexão. É um robô muitas vezes. São muitos os pontos que levam ao que acontece nos Estados Unidos, e não vamos esquecer: o racismo estrutural ganha contornos diferentes dentro da polícia. O caso do João Pedro é isso, do George Floyd é isso.

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