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Opinião

Plataforma 35

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Dia desses, enquanto andava pelo Terminal do Tietê — vale dizer que sem horário para chegar a lugar algum e, portanto, com tempo suficiente para observar o que raramente vemos quando somos tangidos como gado nas ininterruptas filas que seguem o fluxo arterial da cidade que nunca para — percebi as plataformas de onde partem ônibus para todos os lugares imagináveis, dos mais próximos na região metropolitana, aos mais distantes, e onde ‘atracam’ coletivos vindos de todos os rincões deste e até de outros países.

Enquanto meus olhos percorriam a imensidão da plataforma, que se estende até onde a visão é impedida pela multidão ou pela colossal quantidade de concreto armado que se impõe, a brisa da memória varreu a poeira que encobria algumas lembranças e pude voltar no tempo.

Para quem tem rinite, bronquite, sinusite, ou alguns outros “ites”, apenas o ato de ler a palavra poeira já é o suficiente para desencadear uma interminável crise de incontáveis espirros, imagine, então, quando deixamos acumular esse material de alto potencial alérgico sobre parte tão importante de nossas vidas.

Passado o primeiro impacto de abobamento ao visitar algo tão longínquo, semelhante à paralisia provocada por uma crise de espirros daquelas em que não se pode sequer andar, aceitei o convite de uma criança de sete anos, lhe dei a mão e passei a percorrer o caminho que aquele menino indicava.

Ao lado dele, estava uma mulher. Bem vestida, educada, alguém da multidão, mas que se destacava claramente daquela gente cinza que perambula e se camufla no concreto da pauliceia desvairada.

Enquanto acompanhava os dois naquele passeio, aproveitei para ouvir a conversa.

Eram inegavelmente mãe e filho, mas eram, principalmente, amigos, cúmplices. Ele falava sobre um livro que leu uns trechos enquanto esperavam pelo médico. Ela dizia que compraria o tal livro para que ele pudesse ler em casa, já que “ficaria de molho por um tempão”.

No caminho, mesmo em meio à multidão, uma pausa. Foi a mulher que parou para comprar um picolé de manga — disse que era seu favorito.

Percebi que era um disfarce para comprar um sorvete para o menino sem dar na cara que queria fazer um mimo, mas a criança não se fez de rogada e logo emendou “dois de manga, mãe!”. Ela sorriu, pagou, entregou o sorvete na mão do menino e advertiu “vê se não faz sujeira, hein”.

Mais um passo até às cadeiras em frente à plataforma 35, era dali que o ticket da passagem apontava a saída do ônibus.

Pelo o que entendi da conversa estavam adiantados, o menino estava com um pé engessado, fruto das estripulias comuns da infância nítida e que exalava daquele garotinho, que mesmo com o pé quebrado ainda estimulava o aparecimento de cabelos brancos em sua mãe.

Ela, pacientemente, explicava que ele não podia abusar, senão o pé “colaria torto”. Dizem que o medo é um freio necessário a sobrevivência e aquele diálogo era a prova cabal disso, ao ouvir que o pé ficaria torto, o moleque sossegou na cadeira.

Voltaram a conversar sobre a ida ao médico, as estações e as várias linhas do metrô — ela o ensinava tudo a ponto de, num dado momento da conversa, eu ter certeza que mesmo que aquele moleque ficasse ali sozinho, saberia voltar para casa ou ir até Goiânia se fosse preciso.

Cavaleiros do Zodíaco também foi assunto, já que estavam igualmente engajados em conseguir as armaduras de ouro que faltavam, mas, pelo o que ouvi, o gasto feito na compra do Magazord iria atrasar um pouco os planos.

Num certo momento, ela disse para o menino a esperar sentado ali enquanto ia ao orelhão telefonar para saber se estava tudo bem com o Lulu. E de repente, numa só frase, me fizeram lembrar três coisas que, além de cobertas de poeira, estavam postas de lado num cantinho escuro de minha memória.

Primeiro, que bem antes da Luísa vir ao mundo, linda e graciosa, em julho de 2016, houve um Lulu na minha vida.

Depois, que as pessoas, quando estavam fora de casa, faziam ligações de orelhões, os telefones púbicos, num passado nem tão distante assim e, para isso, na última lembrança refrigerada pelo sopro da memória, usavam uma coisa da qual eu absolutamente não lembrava: o cartão telefônico.

E foi justamente ‘cartões telefônicos’ o assunto da conversa, assim que ela voltou e contou que estava tudo bem com Lulu. Ao ver a mãe guardando o cartão telefônico na carteira, o menino comentou algo sobre o objeto e mãe respondeu que teriam novos cartões para a coleção quando “seu pai voltar de Porto Alegre”.

Foi a deixa para uma série de perguntas do menino ao melhor estilo Zequinha do Castelo Rá Tim Bum de ser. Um infinito interrogatório infantil sobre onde ficava Porto Alegre, em que estado ficava a cidade em que o pai trabalhava, qual era a distância até lá, quantas horas de viagem e por aí vai com um sem número de “quantos”, “quandos”, “comos”, “quens” e “por quês”.

Paciente e inteligentemente tudo respondido sem auxílio do Google e com direito a mais informações como que o Rio Grande do Sul, junto com Santa Catarina e Paraná, formavam a região Sul, o que desenrolou para as outras regiões do país, uma passada rápida por estados e capitais e por aí vai.

Era fascinante como uma coisa puxava a outra. A curiosidade do menino não era somente correspondida pela mãe, como era estimulada com conhecimento, educação e um invejável repertório cultural da mulher que educava o filho enquanto acarinhava e trocava ideia com a cria.

De repente a conversa foi interrompida por um estrondo, era um daqueles trovões que anunciam uma tempestade. Ao esticar o olhar para fora da marquise, o céu escuro, relâmpagos e os primeiros pingos fortes eram o prenúncio de mais um típico fim de tarde do verão paulistano, depois de um dia de muito calor um temporal se aproximava.

Em poucos minutos, a cidade se transformaria num inferno submerso, as marginais travariam em quilométricos engarrafamentos e o paulistano enfrentaria mais um suplício nosso de cada dia para chegar em casa.

Mais de duas décadas se passaram e nos CEP’s da ponte pra cá, isso “nunca mudou, nem nunca mudará” — diria Mano Brown.

A preocupação estampou o semblante da mulher e o menino perguntou com o que a mãe estava preocupada. Ela respondeu que se a chuva fosse muito forte haveria alagamento e congestionamento. Ele respondeu com mais uma pergunta: “e o que tem de ruim nisso?”.

Ela explicou que muita gente sofria com as chuvas, perdiam tudo que tinham conquistado com muito suor e, além disso, se pegassem congestionamento, chegariam muito tarde em casa.

Ele retrucou dizendo que se o ônibus demorasse “tudo bem, a gente vai junto e faz companhia um para o outro conversando”. Ela sorriu concordando e disse que “se estivessem juntos tudo bem, porque o tempo passava mais rápido quando estavam juntos”.

O ônibus enfim chegou à plataforma e o motorista, prevendo o transtorno dos alagamentos de logo mais, tratou de fazer rapidamente o embarque para se mandar dali o quanto antes.

Eles entraram e tomaram seus lugares enquanto eu ainda os via pela janela já embaçada pela chuva ou pelos meus olhos que agora se despediam de uma memória daquelas que a gente joga para o canto de propósito.

O menino era eu mesmo, aos sete anos e com um pé quebrado depois de aprontar o que não devia. Ao lado, minha mãe, linda, inteligente e elegante como sempre foi, emponderada antes da gourmetização do termo, não devia ter sequer 30 anos completos e era uma mulherona da porra.

A sabedoria dela era tanta que hoje, quase 23 anos depois daquele dia, sei que realmente os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos e todo o tempo do mundo passavam muito rápido quando estávamos juntos.

Num piscar de olhos o ônibus chegou, noutro a memória fez-se e desfez-se na minha frente, em injustos, porém, saborosos 22 anos, ela se foi e eu fiquei nesse mundo embaçado. Grato por ter sido preparado por ela.

Enquanto vivemos juntos foi tudo rápido, intenso e belo, como jogo bom que passa rápido — diria Galvão Bueno. Como uma vida inteira que pulsa em mim até que meu coração insista em bater, porque fomos nós dois antes mesmo de sermos e continuaremos sendo até depois que não mais formos.

Acho que reencontrei aquele menino junto àquela mulher e justamente naquele lugar por ter sido ali que ela me ensinou coisas importantes que carrego até hoje.

A principal é que a vida é uma eterna despedida, como nas plataformas da Rodoviária do Tietê, onde as pessoas sofrem ao se despedirem para partirem em busca de algo, é a renúncia de algum amor para abraçar um sonho.

Ou como perfeitamente sintetizou aquela canção e que serve para as escolhas da vida e até para o que não temos como escolher, mas serve de escola:

“São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também de despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar”.

De souvenir dessa viagem no tempo, trouxe esta memória, que coloquei em letra para não mais esquecer e, sem obrigação ou dívida, conto em texto o que vivi sem saber se lhe interessa, mas escrever é preciso, é terapia, é sina e sacerdócio desde um dia 2 de dezembro de uns anos atrás.

(Foto: checkinsaopaulo.com / Reprodução)

*Foi do título de um texto publicado por uma escritora, que conheço apenas por seus escritos nesta plataforma, que tirei a inspiração para colocar em letra tudo que por alguns motivos insisto em esquecer. Obrigado, Jordana Machado!

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