Com a palavra, Luiza
Pão nosso de cada filho
Um determinado menino, negro, morador da periferia da cidade, vivendo em condições sub-humanas, foi criado apenas pela mãe – uma lavadeira, também negra, nascida logo após a abolição formal da escravatura, mãe de dez filhos e todos homens. Educação não era prioridade, muito menos o afeto. Era preciso sobreviver. Afinal, a fome não disputa com nada: é sempre soberana.
Naquela casa, a ideia de família não existia como estrutura emocional ou espaço de acolhimento, mas como unidade de produção. Os filhos vinham como um acidente previsível, sendo, cada um, um erro um tanto quanto inevitável. O que pairava no ambiente era competitividade: pela atenção, pelo alimento, pelo lugar no mundo e pelo pouco que existia. A mãe, exaurida, sem tempo para cuidar de cada um, podia apenas lançá-los à terra e esperar que algum vingasse, o que, naquela realidade, significava não ser assassinado ou não se tornar bandido.
Não foi um arranjo familiar isolado, mas parte de um modelo estrutural: mulheres sobrecarregadas, empurradas para o espaço doméstico e produtivo, sem qualquer suporte. Filhos formados não para cuidar, mas para competir. Foi o que se pôde, o que foi muito – nem vivos eram para estar, portanto, participar da nociva competição era, na verdade, uma dádiva. Naquele tempo e em tantos lugares ainda hoje, o afeto e a educação não eram direitos, mas artigos de luxo… Se apresentavam como atos desconhecidos, além de absolutamente incompatíveis com a urgência de sobreviver.
Foi nesse lugar inóspito que o menino negro vingo, segundo o olhar da mãe: não foi assassinado, nem se tornou bandido. Tornou-se homem e teve quatro filhos, abandonou o lar e foi dono de uma padaria que moía sacos e sacos de farinha, convertendo-os em alimento para muitos, mas que, aos seus filhos, ficou o nada: não lhes deu sequer as migalhas que sobravam, nem ofereceu o mais simples dos pães. Quando, por necessidade, a filha mais velha cruzava a porta da padaria, a resposta era invariavelmente a mesma: a conta exata. Quatro pães. Um para cada. A contabilidade precisa, fria, indiferente ao fato de que eram seus filhos.
Esse não era apenas o gesto de um homem específico, mas a reprodução de uma lógica de afetos condicionados, na qual tudo é dívida e nada é oferecido gratuitamente. Amor? Tão desconhecido quanto os inúmeros mistérios que rondam o universo. Os pães entregues à filha não eram expressão espontânea, mas transação implícita: só se oferece o que pode ser contabilizado ou revertido em sobrevivência. Mesmo que sejam os próprios filhos. Mesmo que fiquem com fome. Mesmo que…
O gesto de negar o pão aos filhos, longe de ser apenas uma falha individual, é também expressão da masculinidade que se construiu sob o signo da escassez, da força e da resistência, em que o afeto não era virtude, mas risco. Era o padrão admitido na periferia.
Ainda que o meio não tenha eliminado as possibilidades de outra escolha, certamente as reduziu a um ponto em que só se pode compreender o gesto como parte de um universo afetivo limitado, mas não absolutamente inexorável – precisamos admitir.
O tempo, esse grande compositor de destinos, seguiu o seu curso. E a consciência, paciente, aguardou o momento de fazer retornar aquilo que se tentou ocultar. Nada que é enterrado deixa de existir: apenas se transmuta, silencia ou se desloca para outra forma de expressão. Assim é com tudo aquilo que fizemos ou deixamos de fazer: em alguma hora, surgirá. Seja como uma dor física, uma demência, um colapso emocional ou qualquer outra manifestação.
Com o dono da padaria não foi diferente. Hoje, na velhice, com demência, que mais parece uma volta da mente ao passado, um movimento para refazer, consertar, minorar, aquela mesma mão que outrora negou pães aos filhos estende o que ainda possui: um pouco de dinheiro, agora entregue sem cálculo, a uma criança qualquer, para que ela compre um lanche. Semanalmente. (Um lanche que nunca foi dado aos próprios filhos.)
Quando soube, pensei, por impulso: “Nunca deu aos filhos e, agora, pega o seu dinheiro e dá a qualquer criança assim?”. Fui passional? Certamente. Egoísta? Muito provável também. Revanchistas? Sim. Mas foi o que me surgiu no momento. Fiquei chateada pelos filhos. Porque sempre quiseram esse gesto. Sempre pediram pão e presença. E sempre houve indiferença, silêncio, vazio. Sempre houve o nada – e o nada ocupa muito espaço.
Longe de qualquer condenação e com o esforço de ponderar, pergunto: quando não havia modelo, quando sequer existia o vocabulário da ternura, do cuidado, quando não se sabia nem que era possível haver outra realidade… Seria razoável esperar que ele agisse com afeto, se nunca recebeu? Se nunca viu?
Ou será que, muitas vezes, o gesto ausente não é crueldade, mas apenas a parte inconsciente da falta? Um gesto irrefletido, sem ao menos saber o que era reflexão? A repetição automática de uma consciência que se tornou o único estilo de vida? Porque não havia outra referência.
Isso não o absolve, mas explica. E essa explicação não é uma indulgência, é um reconhecimento da força quase determinante das condições materiais e afetivas em que se nasce. Julgar quem nunca teve escolha efetiva é uma violência silenciosa. Não se trata de perdoar, mas de compreender: ali, naquela realidade de extrema pobreza, em um cenário violento, o gesto que não digo nem afetivo, mas humanitário, não era apenas improvável, era quase inconcebível. A sobrevivência ocupava o espaço inteiro da vida, deixando quase nenhum lugar para aquilo que hoje reconhecemos como cuidado ou afeto.
O meio não determinava de forma absoluta, mas condicionava intensamente, moldando profundamente quem ali nascia e crescia. O que aqui chamei de meio é, na verdade, a sobreposição de estruturas: o racismo que reservou à sua mãe o trabalho extenuante; a desigualdade que os manteve à margem do Estado; e o patriarcado que reservou aos homens o papel de quem não cuida, mas sobrevive, com frieza, se necessário. Que naturalizou o abandono, afinal, fazia “parte” da “natureza” viril do homem.
Produzia pessoas capazes apenas de repetir aquilo que aprenderam, ou, mais precisamente, aquilo que nunca lhes foi ensinado: a disponibilidade afetiva, a generosidade gratuita, o amor sem cálculo.
Importa lembrar que a concepção de amor parental como responsabilidade emocional é uma invenção moderna, difundida sobretudo nas classes médias ocidentais. Naquele contexto, o homem que nega o pão repete, sem saber, não só a sua história familiar, mas o próprio regime afetivo que sua classe, sua etnia e seu gênero lhe impuseram como destino quase inevitável.
Não se nasce amando. Aprende-se, quando há quem ensine, quando há quem possa mostrar que o afeto é possível e legítimo, mesmo quando não há nada.
Naquela realidade, não havia nada. Hoje, é possível aprender. É possível ver. É possível ter informação. O mundo é globalizado. Na época, nem televisão havia. Nem luz. Muito menos, terapia. A realidade era quase pré-histórica.
É certo que sempre houve quem, como por um milagre, driblasse o sistema que, à época, era quase ‘’indriblável’’. Só que apontar as exceções como modelos universais corre o risco de reforçar uma ética meritocrática que ignora que o sistema, ao produzir miséria material, também produz miséria simbólica e afetiva e inviabiliza sistematicamente a possibilidade de superação.
Sigo interrogando: até que ponto o ser humano é capaz de transcender aquilo que o formou, aquilo que o constituiu? Até que ponto é possível desejar outro lugar, se sequer se sabe que esse lugar existe?
Essa pergunta não é retórica. E não me refiro apenas à ascensão social, mas, sobretudo, à ascensão emocional. Afinal, mesmo que alguém consiga romper com o determinismo do meio, as marcas impressas na alma que, com toda a nobreza e complexidade desta, não se dobram, tampouco se modificam ao livre sabor do dinheiro… Permanecem.
Às vezes, as cicatrizes da vida erguem-se como camadas espessas, quase concretadas, ao redor do coração, como se fossem couraças primitivas de proteção. E podem nos conduzir às mais diversas ações, inclusive àquelas que, sob outro olhar, pareceriam impensáveis, como negar pão aos próprios filhos.
Enquanto estamos sãos, conseguimos sublimar muito do que nos desagrada ou nos faz sofrer. Transformamos culpas em justificativas, recalamos dores, terceirizamos responsabilidades, fazemos de tudo para evitar o confronto com nós mesmos. Criamos as mais engenhosas, por vezes mirabolantes, narrativas que nos preservam da vergonha e da responsabilidade.
Mas, quando já não temos mais o controle do corpo, muito menos do cérebro, ele atua por conta própria: invoca as lembranças como bem entender, como se operasse uma espécie de acerto de contas, mas sem exigir pagamento, mas apenas mostrando, expondo, como quem diz: “olhe o que você fez, olhe o que não foi feito.”
Entendi que é aí que o homem, então, se autocondena. Não porque alguém o julgue, mas porque, talvez, tenha inscrito na própria constituição psíquica um mecanismo primitivo que sabe… Sabe o que é preciso fazer diante da raiva, da dor, do outro e da fome… E não foi feito. A consciência, por mais primitiva que seja, acusa, sendo essa a única acusação implacável: a de si para si. Sem apontamento de dedos, a não ser o próprio.
Para alguns, o autojulgamento é irremediável. E, diante da falha incontornável, resta apenas o gesto deslocado, tardio, mas ainda assim humano: um dinheiro entregue a uma criança qualquer, como quem, mesmo sem saber, tenta, enfim, alimentar aquilo que um dia quase deixou a fome vencer e a quem, no passado, quase deixou morrer de fome.
Apesar disso, não há absolvição para o que foi feito. Há, no máximo, explicações. Não há o que justifique um pai ser responsável, com vontade livre e consciente, de proporcionar o peso da fome para os filhos. Propiciar, ainda, a ausência paterna e o silêncio omisso e traumático são irreparáveis para quem viveu. Não está em jogo a absolvição dos atos, mas também não se limita a isso. Vejo que não se trata de uma questão moral, muito menos legal, mas estrutural.
De tudo o que aprendi, percebo que há algo tão cruel quanto negar pães aos próprios filhos: condenar quem, talvez, em um dos seus gestos mais honestos, tenta, a seu modo, reparar o que não soube fazer antes. Dar dinheiro para que uma criança compre um lanche: não para que sobreviva, mas para que experimente, ainda que por instantes, alguma dignidade. É muito significativo que seja sempre para um lanche e não para sobrevivência.
No passado, para assegurar a mera sobrevivência dos próprios filhos, ele dava o estritamente necessário: quatro filhos, quatro pães. Só isso. Mas a dignidade de comer sem fome, o gesto gratuito, o simples direito a um lanche? Nunca houve. E é justamente isso que, agora, sua consciência, um pouco atrapalhada por causa da demência, mas perfeitamente coerente tenta, de algum modo, consertar.
Diria que isso é uma forma de autoconsciência, uma assunção de culpa sem comiseração. Um reconhecimento que não redime, mas faz um certo movimento, ainda que tardio; que não apenas reconhece o erro, mas admite que o padrão não precisa, necessariamente, se repetir até o resto da sua vida, muito menos ultrapassar gerações.
O dono da padaria tornou-se um homem sábio, bem-humorado, embora tenha perdido, quase por completo, a capacidade de sonhar e, como costuma dizer, vive agora “só esperando a morte chegar”. Não decepcionou a mãe: carrega a honestidade como um traço inscrito no próprio DNA. Em tudo. Do dinheiro às opiniões. E não morreu assassinado. Semeou. Semeou para mãe e definhou para os filhos.
Mas… A vida, em alguma medida, é sobre isso: retornar, quando se pode, para tentar consertar o erro, mesmo sabendo que ele é, talvez, irreparável. Talvez já não seja possível fazê-lo com quem sofreu, mas, ainda assim, pode ser de outro modo, em outro tempo, com outra ponderação. A consciência internalizada e o autoarrependimento verdadeiro importam – mais do que a gente imagina.
O tempo, cada um tem o seu. Tenho a possibilidade de aprender desde já, e vocês também – interpretem.
Fato é: o eterno retorno não é só filosofia. É do nosso caminho por aqui. É para quem errou no passado, se arrependeu genuinamente e hoje não erra mais. É para quem errou, sublimou, mas, em algum momento da vida, se autoavaliou com verdade. É, por pior que seja, para aqueles que só sabem repetir, não por não verem, mas pela arrogância e por serem pernósticos, então, repetem eternamente. Até mesmo sabendo que curvo é o caminho da eternidade.
“Vi, na prática, o eterno retorno. Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.”
Nietzsche
