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Opinião

O nascimento de Mary

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Há 27 anos em Jupi (PE) ela veio ao mundo, mas sua existência de fato se deu em 2019 quando se reconheceu como mulher trans

Retrato Mary | Foto: Acervo Pessoal

O Brasil lidera o ranking mundial de países que mais matam transexuais. Em 2019, foram registrados 124 assassinatos no país, segundo informações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) e do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE). Muitas dessas pessoas morrem sem ao menos ter voz. Ninguém conhece suas histórias.

Há cerca de um ano, um amigo meu se descobriu como uma mulher transexual. É a Mary, de 27 anos. Eu a convidei para uma conversa sobre as mudanças e os sentimentos envolvidos nesse processo. Durante o bate-papo, ela também falou sobre a forte ligação que tem com a arte e o quanto isso transforma sua vida.

Quase todas as minhas perguntas foram curtas e diretas. Mary brilhou e conduziu a entrevista para lugares que eu sequer imaginava poder ir. Me deixei ser conduzido por ela. Assim, optei por manter suas respostas exatamente como foram faladas, sem fazer qualquer tipo de edição ou corte. Acredito que dessa forma o leitor se sentirá como eu senti enquanto ouvia ela falar: emocionado, surpreso, aflito, extasiado e orgulhoso.

Confira:

Quem é Mary?

Eu me chamo Mary. Ainda não tenho nome completo, porque, na verdade, só pensei nesse nome. O resto, eu ainda não sei, porque ainda não comecei minha transição. Quem é Mary? Mary tem 27 anos, contudo, eu posso dizer que Mary só tem um ano de vida. Eu sou uma bebê, porque vim me descobrir trans ano passado. Até então, eu achava que eu só era gay. Foi necessário entrar em depressão para entender que o que estava faltando na minha vida era eu entender que era uma mulher.

Enfim, Mary quase terminou a faculdade de Cinema – não terminou porque tinha entrado em depressão. Mary quer ser cantora, esse é o maior sonho da vida dela. E ama artes, por isso escolheu fazer um curso de Cinema, que é um lugar onde a gente pode colocar e misturar todo tipo de arte. Mas nesse momento Mary está trabalhando como agente de aplicativos de lives. Mary é uma mulher trans que ainda não se transicionou.

Mary sabe que é uma mulher que mora sozinha porque os pais não aceitam muito bem o jeito que ela quer ser e também por causa do trabalho dela. Mary tem um irmão, tem um pai, tem uma mãe, todos vivos. E é isso.

Por que você escolheu o nome Mary?

Amo quando as pessoas me perguntam o porquê do meu nome. Eu não o escolhi do nada. Desde criança até agora eu percebi que a maioria das pessoas importantes na minha vida e que me ajudaram pra caralho, tinham o nome de Maria. E aí, pensei: velho, quando for escolher um nome, eu preciso honrar essas mulheres, já que eu sou uma mulher. Na verdade, nessa época eu não tinha noção…, mas eu tinha noção que ia me vestir de menina e fazer performances artísticas de menina. Eu sabia que ia fazer isso tudo. Aí, queria ter alguma coisa dentro do meu nome que remetesse a uma mulher e, pra mim, as mulheres que mais me representavam eram as que tinham o nome de Maria.

E aí, pensei: ai, meu Deus, o que é que eu vou fazer? O nome Maria em si não combina pra mim. Daí, eu vi todas as formas de nomes de Maria porque, em toda língua, Maria muda de nome, fica com uma escrita diferente. Eu vi que em inglês era Mary. E gostei. Aí, falei: é isso. Então, Mary é uma forma de homenagear todas as mulheres da minha vida que se chamam Maria e que foram importantes pra mim. Minha mãe e a maioria das minhas amigas têm o nome de Maria.

A primeira pessoa que fez com que eu quisesse ser artista não se chama Maria, mas as personagens dela, sim: Maria do Bairro, Maria Mercedes, Marimar. Estou falando da Thalía, a minha primeira inspiração. Ela foi a primeira pessoa que eu vi na televisão e fiquei: uau, eu preciso ser isso. Foi a primeira pessoa que eu olhei assim e falei: gente, eu sou uma menina. Tipo, eu me enxerguei como se fosse um espelho, sabe? Eu vi a Thalía e vi eu mesma ali.

Apesar de só ter se reconhecido como mulher trans no ano passado, você sempre sentiu que era uma. O que te fez aceitar essa ideia e, de fato, se reconhecer como trans?

Desde criança eu sabia que não era igual aos meninos. Eu me enxergava mais na imagem das meninas e das mulheres, mas não sabia o que era isso. Eu não sabia o que era uma mulher e o que era um homem, enxergava apenas que existiam dois tipos de pessoas diferentes, mas não sabia que isso era gênero. Só depois da internet e da faculdade é que eu vim entender o que era uma mulher trans e todas essas designações de gênero.

Enfim, desde a infância eu sempre me dei melhor com as meninas e isso seguiu tanto na pré-adolescência quanto na adolescência. Mas meus pais sempre diziam: “não, você não deve andar com meninas, você não deve fazer determinadas coisas, isso vai fazer com que você seja chamado de gay”. E aí eu escutava e ficava: tá bom, né? O que é que eu posso fazer? Como é que eu vou opinar nesse caso? Não tinha como opinar. E aí, eu fui sendo reprimida e foi criando um vazio muito grande. Eu não sabia que era mulher, óbvio.

Me apresentei como gay pra mim mesma, mas eu não falava pra eles. Só fui admitir que era gay em 2011 quando já estava indo pra faculdade. E aí, todo mundo soube. E minha mãe falou pra mim: “beleza, você pode ser gay, mas, por favor, não se escandalize”. Ela falou que não queria que eu fosse mulher, que eu botasse peruca nem nada. Minha infância foi boa, porque eu fui livre, mas não tão livre. Por exemplo, eu não podia brincar com as minhas amigas, eu não podia brincar de boneca, não podia usar vestido, porque era errado e tal.

Enfim, minha infância foi boa, mas eu não poderia ser ainda o que eu era, sendo que eu nem sabia o que eu era. E enfim, fui crescendo, fui pra faculdade e lá fiquei com dois garotos. Esses dois garotos foram muito importantes pra mim, mas nenhum dos dois quis me assumir. E isso era muito frustrante. Fiquei com depressão por causa dos dois, basicamente por causa do último.

Eu acabei morando sozinha, em Boa Viagem, e ele não estava comigo. E aí, eu sempre pensava nele. Era na época do meu TCC. Nessa época, em vez de enfrentar o problema de não estar com ele, eu ia pra casa dos meus amigos e ficava a semana toda lá. Não fazia meu TCC, ficava só procrastinando, mas eu tinha na cabeça que um dia eu ia conseguir fazer. Ficou essa palhaçada toda durante um ano e meio. Depois eu acabei voltando pra poder terminar o TCC e não consegui de novo. Depois de tantas derrotas, depois de tantas merdas que tinham acontecido na minha vida, finalmente desisti da faculdade em 2016. Falei: não quero mais saber disso.

Voltei pra casa achando que talvez eu fosse fazer outra coisa que ia me animar, mas não foi o que aconteceu. A cada dia eu ficava pior, mais depressiva. E eu não entendia o porquê. Quer dizer, entendi algumas coisas. Entendi que era por causa desses meninos, mas a coisa era muito mais funda do que isso. E aí, na minha depressão, em um momento de clareza, eu acordei e entendi que ia começar a pensar na minha infância, na faculdade e nas pessoas que eu tinha conhecido. Aí, entendi que o que estava faltando na minha vida era eu me assumir como mulher, porque eu não tinha coragem.

Uma amiga minha perguntou uma vez na faculdade: “será que você não é mulher e está negando isso?” Eu falei: não, na verdade eu já me acostumei a ser homem. Eu já pensei isso quando eu era criança, mas eu já me acostumei. Tá tudo de boa. Só que não estava de boa, e foi aí que descobri que essa era uma das razões pra eu estar assim. E aí eu falei: bem, é isso, eu sou mulher trans. Acabou! Na mesma época, uma amiga me ofereceu pra trabalhar em um aplicativo de lives. Eu entrei nesse aplicativo já me aceitando como mulher. E aí, no aplicativo, eu já comecei a usar roupa de menina, a colocar peruca, usar maquiagem e foi maravilhoso. Eu sei que o aplicativo em si me ajudou a superar 70% da minha depressão. Depois, fui pra outro aplicativo que foi me ajudando mais ainda.

Hoje eu não estou 100% boa, tenho minhas crises às vezes, mas são crises de momento. Não são tipo, um ou dois meses de depressão. Eu fiquei três anos em depressão, entendeu? Hoje eu já me entendo melhor como trans, com muito mais consciência, porque depois que eu me descobri, comecei a assistir vídeos no YouTube e a ler sobre. Todos os meus amigos já sabem que eu sou trans. Minha mãe e meu pai também sabem que eu vou ser uma menina, mas pra eles é muito confuso. Minha mãe já falou que não vai me apoiar, mas foda-se. Eu não estou nem aí.

Esse processo de me descobrir trans, desde criança até hoje, foi um processo muito longo. Antes não tinha informação. As pessoas até me diziam que eu poderia ser mulher, mas eu não aceitava porque já estava habituada a ser menino, por ter sido oprimida para ser menino. E quando eu descobri foi uma luz no final do túnel. Mas ainda tenho um pouco de agonia porque, enfim, estou muito velha pra fazer transição. Vou fazer, porém me sinto muito velha. Eu deveria fazer isso desde que eu era criança, não é? Se eu tivesse informação, se meus pais fossem mais instruídos, eu poderia ter feito isso desde criança.

Você falou que já era difícil para os seus pais te aceitarem quando você se apresentou como gay para eles. Então, como foi se apresentar como trans? Como é sua relação com eles?

Pro meu pai eu contei que era gay e a reação dele foi melhor do que a minha mãe. Ele falou assim: “eu gosto de você do jeito que você é, do jeito que você quiser ser”. Inclusive, teve uma época na faculdade que eu postava fotos vestida de menina, de vários personagens e minha mãe fazia muita birra com isso. Mas meu pai, não. Ele achava que eu realmente teria um futuro como artista. Desconfio que talvez pela preocupação da minha mãe, meu pai ficou preocupado e hoje ele é bem pior do que ela.

Eu falei pra minha mãe que eu ia ser uma mulher várias vezes e ela: “você vai ser uma mulher muito feia. Ai, eu não lhe vejo como mulher”, algumas coisas nesse sentido, sabe? Mas ela já falou muitas vezes que não ia me apoiar em nada. O que eu acho que é mentira. Pelo menos da parte da minha mãe, eu tenho a maior certeza que quando eu me operar e tiver precisando de ajuda ela vai me ajudar, sim, se eu tiver perto dela – tem esse detalhe – eu tenho de estar perto dela, né? Porque se eu tiver longe, realmente ela não vai ter como me ajudar. Só me ligar. Mas, em questão da aceitação do meu pai e da minha mãe, sei lá. Eu acho que minha mãe ainda não aceitou. Eu acho que ela pensa que isso tudo é uma brincadeira, que eu estou louca, alguma coisa desse tipo. E meu pai, ele sabe, mas eu não falei pra ele. Ele meio que ignora isso. Acho que ele também pensa que isso não vai acontecer. Só que cada vez que eu vou ficando mais independente, eu acho que isso vai ficando mais claro na cabeça da minha mãe – que eu, uma hora vou virar mulher.

Porque tipo, ela já vê que eu tenho perucas, maquiagens e um monte de coisa no meu quarto. Teve um dia que eu falei assim pra ela: mãe, a senhora sabe que eu vou fazer minha transição, que eu vou ser uma menina, né? E ela respondeu: “tudo bem, mas faça isso longe, não faça isso aqui nessa cidade (Jupi/PE), porque você sabe como essa cidade é”. Enfim, a minha mãe muda de opinião muito rápido, então, eu não sei como vai ser isso. Eu sei que ela vai me ajudar sim, com certeza, mas como será essa ajuda? Eu não sei. Acho que o pior desafio vai ser quando eles me virem diferente.

Enquanto eu não me transformar e ficar longe, vai tá tudo bem. Agora, quando eu me transformar e mostrar pra eles que eu já sou uma menina, vai ser outra história. Tenho certeza que o pai vai ficar sem falar comigo por anos. Mãe, talvez siga o mesmo caminho, não sei. Porque quando eu era gay, minha mãe e meu pai me tratavam de um jeito. Antes de ser gay, eles me diziam uma coisa diferente. Depois que eu me assumi, eles foram super de boa, não falaram nada, me aceitaram. Então, eu não consigo entender como vai ser a reação deles quando eu realmente virar trans.

Sua mãe falou: “faça em outro lugar, você sabe como é essa cidade”. O que você pensa a respeito disso? Você quer fazer a transição em outro lugar?

Amigo, estar aqui seria muito mais fácil para me transicionar, porque a minha mãe ia me ajudar, e porque o custo de vida daqui é bem mais tranquilo. Mas se eu me transicionar aqui vou receber pedra na cara, as pessoas vão falar coisas, então, não, não quero estar aqui. Mas não é só por causa disso. Eu não quero ficar aqui porque não é um lugar bom pra mim. As pessoas não vão me entender, eu vou sofrer muito e eu quero sim mudar de lugar.

Eu quero ir para outro país, tanto pela questão da transição, porque eu acho que fazer a transição aqui não vai ser fácil, quanto pela questão financeira, de profissionais – não acho que tem profissionais bons aqui, não acho que a tecnologia aqui seja interessante – e também pela questão artística. Não acho que minha música vai ser interessante pro Brasil. Pode até ser que seja, mas nesse momento eu não sinto confiança no Brasil. Eu realmente preciso ir pra outros lugares, conhecer outros lugares. Então, sim, eu quero ir pra outro lugar e fazer minha transição em outro lugar.

Por falar no Brasil, nós sabemos que aqui não é um país fácil para quem é LGBTQIA+. Você tem medo do que pode acontecer quando você passar pela transição?

Sim, eu tenho muito medo de ser trans, de não conseguir ser exatamente como eu quero ser. Mas isso eu vou trabalhando com psicólogos. O que eu tenho medo mesmo é de, hum… deixa eu ver como te explicar. Se eu me tornar uma mulher, aparentar ser uma mulher, eu vou ter uma série de medos. Primeiro, de ser atacada na rua se alguém perceber que eu não sou uma mulher que nasceu uma mulher, então eu tenho medo físico. Segundo, tenho medo de arrumar um namorado, falar que eu sou trans e ele gostar de mim e ficar comigo, mas depois de um tempo ele me colocar pra fora, me negar, sabe? Eu falo isso porque no próprio aplicativo de lives que eu participo, já me envolvi com várias pessoas que disseram que me aceitavam como trans, ficavam comigo e depois de um tempo me bloqueavam.

Eu sentia que isso acontecia porque eles falavam que me aceitavam como trans pra fingir que não tinham preconceito, mas na verdade tinham. E, depois de um tempo, qualquer deslize que eu cometia eles simplesmente desistiam de mim, mas não diziam que era porque eu era trans, mas eu tenho certeza que era por causa disso. Enfim, eu tenho medo de namorar alguém e a pessoa me tratar de uma forma inferior. Eu já me sinto inferior às mulheres cis, já tenho medo dessa pessoa me colocar numa posição inferior em relação às outras mulheres, tenho medo de ficar com ciúme de outras mulheres por causa disso, tenho medo de não conseguir ser uma mulher do jeito que a pessoa vai querer, enfim, eu tenho medo.

E mesmo se eu nascesse uma mulher, eu também ia ter medo, porque convenhamos, a sociedade nunca viu a mulher com bons olhos. Eu já falei isso pra vários amigos. Eu tenho muita agonia porque eu sei que se eu tivesse nascido mulher, eu ia sofrer do mesmo jeito, porque a mulher não é bem entendida. O único ser humano que “existe” é o homem. A mulher, simplesmente é só uma pessoa que está ali pra ajudar. Ela não é vista como ser humano. Claro que isso tem mudado com o tempo. Mas, assim, praticamente o ser humano que existe quando a gente fala ser humano, a gente só pensa em homem. É tanto que em livros de história, todas as vezes que vai se referir a alguém, é ao homem. O homem fez não sei o quê, o homem fez não sei o quê lá, o homem das cavernas, o homem não sei de quê… é tudo homem.

Eu lembro quando era criança e ouvia isso toda hora, nos livros. Eu ficava: e a mulher? Onde é que ela está nessa história?” Aí eles me explicavam: “não, se fala homem porque são seres humanos em geral”. Mas, enfim, eu tenho medo de ser rejeitada. Eu teria medo se eu fosse mulher, se eu tivesse nascido mulher também teria, porque a mulher, realmente, não é escutada, não é vista, não é entendida.  Ser mulher trans é pior, porque, se o homem já não considera mulher como um ser humano direito, imagina uma pessoa que escolhe ser uma mulher. Eu sei que eu sou uma mulher, mas pra essas pessoas, eu estou escolhendo ser uma mulher.

Então, o desprezo é muito maior do que pra uma mulher cis. E eu tenho medo. Mas, a minha arte me faz ser corajosa. A vontade de cantar, a vontade de dançar, de querer falar, de desenhar, de fazer milhões de coisas, me faz com que eu seja corajosa e eu não tenho medo. A arte me faz não ter medo de ser trans ou ser qualquer outra coisa, porque eu sei que eu posso combater isso com o meu cérebro, com a minha inteligência e com a minha racionalidade.

Me fala sobre sua arte e sua ligação com ela (com a arte). O que você pretende fazer?

Eu não sei explicar como eu sou conectada ao mundo das artes, mas desde criança caminhei com ela de um modo geral. Eu adorava novelas, música, filmes. Tudo que tinha música relacionada eu adorava. E daí, com o tempo, fui descobrindo que eu sabia cantar muito bem. Nunca fiz uma aula de música, mas eu sabia que cantava muito bem. E daí percebia que eu conseguia escutar e emitir exatamente o som que eu ouvia. Sei fazer muita coisa: sei desenhar, cantar, tocar teclado, violão, guitarra, bateria. A maioria disso tudo eu aprendi sozinha, menos o violão, que eu aprendi com uma pessoa. Eu fiz faculdade de Cinema, não terminei, mas, fiz. Vou terminar, né? Só falta passar a parte do TCC.

Eu pretendo que tudo isso seja um complemento à minha arte principal, que é ser uma artista, uma performer, cantar para as pessoas. É isso que eu quero fazer. Eu quero cantar para as pessoas, mas não quero cantar coisas óbvias que todo mundo já cantou. Não me interessa mais isso, embora eu tenha muitas músicas assim. Ah, eu também componho, tá? Sou compositora. Eu tenho muitas músicas sobre amor e blá-blá-blá, mas não é assim que eu quero me expor. Eu quero cantar sobre coisas reais, coisas da sociedade, quero falar sobre problemas que eu já passei, problemas reais.

Quero falar sobre doença mental, sobre gênero, sexualidade, sobre as hipocrisias na sociedade. E eu sei que cada vez que escrever uma música, eu vou ter a oportunidade de mostrar isso para as pessoas e vou cada vez mais me sentir melhor, sabe? Eu acho que é aí que tá a minha cura, em me expor do jeito que eu quero me expor. Eu quero transformar a minha arte e colocá-la como um instrumento transformador, não só pra mim, mas para as outras pessoas também. Porque eu já fui curada por várias outras artistas mulheres. Por homens também, mas a maioria, mulheres.

Para encerrar, quais seus planos para o futuro? Como você se vê daqui a alguns anos?

Então, primeira coisa: pretendo não estar morta e eu falo isso não como uma coisa óbvia, porque todo mundo pode morrer. Não é isso. Mas eu realmente tenho medo de ser morta pelas coisas que talvez eu vá dizer. Então, espero não estar morta. Eu pretendo daqui a três anos estar consolidada, pelo menos, em algum lugar como artista. Eu sei que eu sou artista, isso não tem pra onde correr, mas eu quero reconhecimento como artista. E quero ter reconhecimento também como uma pessoa que está lutando por outras pessoas e por mim mesma. Enfim, eu não sei onde vou estar, não sei que lugar eu vou estar, mas se eu já estiver sendo artista e sendo reconhecida por isso, ótimo. Mas eu realmente quero estar viva, porque eu tenho muita coisa pra dizer.

Essas coisas são complexas e eu preciso de tempo para isso. E a gente bem sabe que qualquer pessoa que vai falar qualquer coisa que vá de encontro à sociedade toda, morre cedo, né? A gente tira isso por muitas pessoas que já viveram: negros que falavam a verdade sobre a sociedade branca, mulheres que falavam a verdade sobre o homem, enfim, várias pessoas que são diferentes da sociedade, elas morrem cedo porque a sociedade acha um jeito de matá-las. Não precisa ser de forma direta, mas de forma indireta também. Então, eu pretendo manter minha sanidade, eu pretendo estar bem.

Vou procurar sempre estar perto dos meus amigos, procurar sempre estar perto de quem gosta de mim. Eu pretendo realmente, com a minha arte, ajudar um milhão de pessoas, o máximo que eu puder. E também ser ajudada. Eu não quero ser o ponto principal das outras pessoas, sabe? Eu não acho que uma mudança na sociedade vai depender de uma pessoa só. Eu acho que a mudança é coletiva, todo mundo tem que mudar. Mas, pra começar alguma coisa, é preciso que poucas pessoas comecem a fazer isso e daí, isso se espalha para as outras pessoas, como se fosse um vírus mesmo.

Uma ideia inicial que se espalhe para as outras pessoas. Eu não sei se eu serei parte dessa ideia inicial ou se eu serei um instrumento para espalhar a ideia pras outras pessoas, mas independente do que seja, eu quero estar viva pra poder ajudar a mudar o mundo e mudar a sociedade. E é isso, eu só espero estar bem, fazendo minha arte. Eu fiquei muito feliz com essa entrevista. Falar sobre a minha vida, falar sobre as coisas que eu passei, me deixa muito bem, porque me torna mais humana, sabe? Me mostra o que eu já vivi e me faz entender que essas coisas acontecem. E é isso, eu vou indo.

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