Com a palavra, Luiza
Ninguém te pediu profundidade, Luiza!

Nem sempre dá para saber ou distinguir se estamos caindo na traição das imagens da realidade ou se estamos apenas enxergando com o que há de sensível em nós. Se estamos nos doando demais ou apenas sendo fiéis ao que acreditamos ser. Se estamos persistindo por cegueira escolhida ou permanecendo por sermos inteiros demais naquilo que somos. O perigo é que o que parece excesso é só o que é honesto sem disfarce, real como é. Por outro lado, às vezes, também é só medo de si mesmo e do que foi, muito bem disfarçado de entrega.
É nesse lugar que há quem se diga estar no controle, mas insiste em ofertar pérolas a quem só sabe manejar aquilo que não passa de superficial. Também há quem diga que está se resguardando, quando, na verdade, está erguendo barreiras tão altas e intransponíveis que nem a própria bondade consegue entrar, imagine o que vem de verdadeiro do outro?
Preservar aquilo que é o centro da nossa alma exige um tipo de discernimento que não nasce espontaneamente e não se aprende em livros de “Como aprender a ler o coração em 21 dias”. Há algo quase genético em nós que nos impele a ir, a entregar, não a medir ou dirimir. Permanecer, por vezes, parece instinto. Cuidar desse lugar, que é a parte mais viva do nosso espírito, significa ter a coragem de executar aquilo que diz: não se protege a alma se trancando. Mas também não se deve oferecê-la como se não houvesse consequência. Porque há. Sempre há. E é preciso estar muito acurado para distinguir o joio do trigo, o que é e o que não é.
Por isso não se diz “siga o seu coração”. Diz-se: “guarde-o”. Afinal, ele é o lugar mais fértil e o mais frágil de todos. É dali que se ama, se rompe e se restaura. Mas também é lá que se confunde, se idealiza, se engana, se machuca e se autodeprecia. O coração é astuto: para nos agradar, faz parecer que é o momento certo, quando é só distração disfarçada de um grande senso de urgência. Faz parecer que é cuidado, quando é apenas controle. Faz parecer que é reciprocidade, quando é só utilidade travestida com ares de afeto. Se não é de se assustar com tamanha engenhosidade, é o quê?
É inegável: a razão consegue ser mais precisa e menos manipulável, por isso que se expressa por meio de gestos. Diante desse mar de subjetividade, prego batido e ponta virada: zelar por si é parar de tentar ocupar lugares ou situações em que a nossa presença precisa ser justificada. É respeitar a linguagem que nos é mostrada, mesmo quando ela diz, com ou sem palavras, que não pretende nos encontrar no mesmo lugar e talvez nunca tenha pretendido.
Cuidar do nosso coração pode ir inúmeras vezes contra tudo que projetamos ou esperamos. Quase nunca será leve, tampouco agradável: tende a mexer com o ego, com as nossas crenças mais profundas e com os valores mais constitutivos de quem somos. Pode nos deixar sem escapatória a não ser a de encararmos a rejeição, o não e o desconforto de sermos preteridos, mesmo quando fizemos de tudo para sermos escolhidos. Sobre isto, é preciso lembrar: não se trata de performance. É sobre vontade, momento, vocabulário e extensão emocional do outro. Também pode nos colocar diante de vermos que a ação mais fiel a nós é não continuarmos, sem que signifique mera desistência de pessoas ou projetos, mas puro sopro de uma mínima dignidade.
De forma inesperada, surgiu agora uma parte que nem sempre gosto, mas que não nego quando vem: a necessidade de falar em primeira pessoa. Não por vaidade, mas porque há temas que só podem ser falados quando ditos do próprio lugar. E não há nada mais meu do que esse impulso de me expressar, mesmo quando o desconforto tenta calar.
Nasci com o que me faz visceral, impetuosa e entregue de coração inteiro. Tenho todos os defeitos do mundo, mas caminho com uma verdade que não aprendeu a disfarçar além do necessário para ser considerada educação, e uma lealdade que permanece até quando nem deveria mais. Se estou em alguma circunstância ou diante de alguém, estou inteira. Não aprendi a parecer o que não sou. E, se eu resolver estar, será por escolha, e não por conveniência.
Renuncio ao que é meu se for para contribuir com o que ou quem importa. Posso caminhar pelos desertos que forem, porque estar, para mim, nunca foi estratégia, sempre foi partilha.
Não tenho vocação para oportunismo. Sinto de verdade. Me comprometo de verdade. E, por isso, também me frustro de verdade. Não cedo fácil à lógica do tanto faz. Não me resigno com a falta de brio. Quando saio, saio pela porta da frente com a certeza de ter sido inteira como sou e por ter, de fato, permanecido – não por inércia, mas por acreditar. Carrego esse incômodo com o superficial e percebo que o cansaço de tentar me fazer entender em línguas que não são minhas só me gera um tipo de esgotamento existencial/relacional. No entanto, ser quem sou tem uma potência tamanha que não há o que transmute, deforme em definitivo ou me afaste da minha natureza. Ser o que sou é a mais singela forma com que exerço a minha dignidade e é o que há de mais inegociável.
O ideal mesmo é que eu não demonstre tanto para não parecer demais, que não acredite tanto porque o mais importante: entrar na caixinha que circula muito bem, mas que não tem um pingo de honestidade consigo. Sou inapta para qualquer tipo de atuação, a começar porque minha memória é péssima e nem o texto de entrada eu saberia entregar.
Vivemos em um tempo que privilegia a indiferença e sentir menos se tornou uma virtude. Ser como sou sempre soou como inadequado: “demais”, “intensa”, “dramática”, “emocionada”, que não passam de rótulos usados para minar e domesticar a profundidade de quem ainda ousa não ser blasé. Nunca fui assim, já nasci acontecendo.
Seguirmos com a nossa autenticidade é a mais corajosa forma de persistência, tendo em vista que tudo ao redor nos convida à performance, ao adormecimento e à covardia disfarçada de inteligência emocional. Mesmo com o coração treinado para discernir, haverá alguns dias em que ele falhará. E, contrariando quase tudo que eu disse até agora, digo sem medo: ainda bem. Porque viver exige risco.
E mesmo que já saibamos em que situações tropeçamos, ainda assim, enquanto nos lançarmos com a nitidez de que escolhemos arriscar (de que podemos perder ou ganhar), haverá vida em movimento. E vamos errar. Vamos acreditar em quem não sustenta. Vamos ofertar o que temos de mais genuíno a quem não sabe o que está recebendo, ou o pior: sabe e descarta.
Por mais contraditório que seja, guardar o coração, no fim, também é isso. O erro, vivido com consciência, ensina mais do que mil acertos no automático. Há uma sabedoria que só nasce da dor que não conseguimos evitar. Existe uma nobreza em continuar genuinamente sensível mesmo depois de tanto ter sido ferido.
Ter consciência e viver, às vezes, é desobedecer ao próprio mapa e arriscar um passo fora da rota. É sentir sem plano de contingência, tendo em vista que uma vida perfeita demais talvez nem vida seja, mas apenas boas coleções de decisões que evitaram sofrimento.
Quanto mais o tempo passa, mais eu me aproprio de que eu não vim ao mundo para fazer da cautela um modo de existir. Até as marcas de quando me fecho com medo da vida e das pessoas são sentidas em completude. Vejo que estou sentindo, até quando a sensação é de não estar sentindo. Não tenho como fugir: sou mesmo uma metalinguagem.
A leveza totalmente artificial de quem nunca passou do primeiro degrau de reflexão e autoconsciência, não tomem como arrogância, mas não me interessa. Isso, para mim, é que é viver à margem da vida. E escolher seguir assim, considero uma forma discreta de desistência.
E, apesar de não me considerar resiliente e me ver tantas vezes tão frágil, há uma potência interna que não me permite dissociar-me de mim. E como não há o que drible a força desse gênio, haveria alternativa melhor a não ser fazer disso a minha graça e o meu charme?
Nota da autora: Incapaz de praticar o poder de síntese, entrego a epígrafe completa, porque cortar a parte mais fidedigna e com o deboche e humor ácido que merecem, seria uma violência. E vamos combinar: sou intensa, não criminosa, risos:
Epígrafe: Você até se esforçou para seguir o script. Mas só durou o tempo de abrir três cronogramas estratégicos, cinco estudos de caso e dois memoriais freudianos analisados em quatro camadas de algumas neuroses. E, claro: cinco áudios-podcast de três minutos, porque até o caos precisa de uma curadoria muito bem feita. Fez da intensidade sua bandeira. De veludo, é claro! Com caimento perfeito para não desonrar a patricinha que é. Tinha até margem justificada e sumário sensorial, com hiperlink cinestésico direto para tudo que não foi validado. Patricinha? Sim. Mas com glossário afetivo em tempo real e radar emocional que capta até o que não aconteceu. Com 1,53 e carinha de quem pede desculpa por existir, você chega delicada demais para ser levada a sério… Até perceberem que sua delicadeza vem com pós-graduação em traumas com demandas emocionais. Inclusive, diriam que é uma pinscher raivosa? Suas dúvidas existenciais têm paleta de cor, suas crises vêm em fonte serifada. Incompreendida? Tudo bem. Nenhuma novidade. Sempre foi. Agora, fora da paleta e mal editada? Jamais. E, como o drama sempre vem, que tenha trilha sonora premiada, versão estendida e discurso pronto para o Oscar. Porque se é para seguir com o show, que seja com roteiro, direção de arte e exagero emocional e filosófico premium turbo max mega power.
