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Esporte

Futebol volta à normalidade no país da anormalidade

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No Brasil, todos os anos, as competições nacionais têm o pontapé inicial no primeiro semestre, porém, em 2020, a pandemia do novo coronavírus paralisou as disputas esportivas no mundo inteiro e não foi diferente em território brasileiro. No entanto, no momento em que o país atinge 100 mil vítimas da Covid-19, o Campeonato Brasileiro será iniciado

(Foto: Reprodução / CBF)

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em 14 de julho, anunciou que iniciaria as Séries A, B e C do Campeonato Brasileiro no mês de agosto e a Série D em setembro. As primeiras três divisões nacionais terão suas rodadas inaugurais neste fim de semana de dia dos pais.

Na Europa, onde o futebol já foi retomado, o reinício das competições foi um símbolo do controle da pandemia em países extremamente afetados como Itália, Reino Unido e Espanha.

Com quase três milhões de infectados e 100 mil mortos, o Brasil não conseguiu controlar o surto e de acordo com especialistas, vive o risco da explosão de uma segunda onda de contágio.

É nesse cenário, com 100 mil tristes motivos para não ter futebol no Brasil, que o Campeonato Brasileiro começa e alguns pontos são novidades e merecem atenção.

O aspecto físico

A retomada dos campeonatos estaduais mostrou um fator que deve ser decisivo no decorrer da temporada: a condição física dos atletas. Quando as medidas de distanciamento social foram implementadas no Brasil, em meados de março, os treinamentos também foram paralisados.

(Foto: Fernando Torres / CBF/ Reprodução)

Muitos clubes fizeram um planejamento de condicionamento físico para seus atletas em regime domiciliar, mas as atividades presenciais foram retomadas em meados de junho, em alguns casos mais tarde, como em São Paulo, onde treinos só foram liberados em 1 de julho.

Atletas profissionais de alto rendimento não costumam ficar períodos tão longos afastados das disputas e os resultados dessa experiência devem ser observados nesse retorno.

No estaduais já foi possível notar que isso pode fazer a diferença como demonstraram os níveis competitivos do Campeonato Carioca e Paulista, que com a diferença de quase um mês de retorno do primeiro para segundo, o Flamengo se apresentou em melhores condições físicas do que os times paulistas.

O chamado ritmo de jogo pode ser decisivo para que o Flamengo, que retornou antes dos demais, embale nas primeiras rodadas e dispare na liderança em busca do bicampeonato nacional.

Outro ponto a ser apontado no condicionamento físico é a capacidade que os atletas terão de apresentar para enfrentar a maratona de jogos num período reduzido pelo calendário mais apertado, o que pode gerar alto desgaste e acarretar lesões.

A desorganização do calendário

O Campeonato Brasileiro deveria ter começado em maio, mas com a parada devido à pandemia, está sendo iniciado com três meses de atraso e isso vai refletir durante a temporada.

(Foto: Fernando Torres / CBF/ Reprodução)

Em razão das decisão estaduais, o Brasileirão terá o adiamento de alguns jogos, logo na primeira rodada, Palmeiras e Corinthians, que decidem o Paulistão, não jogarão.

A primeira consequência desse imbróglio é a data de término da série A, prevista para 24 de fevereiro de 2021. Na era dos pontos corridos nunca um campeonato ultrapassou o ano de disputa.

Depois, o tempo também será mais curto e consequentemente com maior acúmulo de partidas em menos dias, pois da primeira a 38º rodada o intervalo será de 200 dias, período menor que a média de anos anteriores.

Ou seja, o calendário brasileiro que já costuma ser apertado, em 2020 será ainda mais e o pouco tempo de descanso entre as partidas pode gerar uma queda de rendimento dos times por desgaste ou lesões, isso sem considerar possíveis ausências de atletas infectados, pois estarão mais expostos o que nos leva ao terceiro ponto.

Os protocolos de “faz-de-conta”

Dirigentes, federações e clubes se apressaram em desenhar protocolos que beiram a perfeição da segurança sanitária.

( Foto: Pixabay)

Em alguns casos, de tão aparentemente seguros, dá vontade de isolar a população brasileira num desses protocolos para controlar a pandemia. No entanto, como diria o grande jornalista Joelmir Beting, “na prática a teoria é outra”.

Desde o retorno do Campeonato Carioca, esses protocolos levantaram suspeitas quanto aos valores que podem não ser acessíveis para clubes menos endinheirados, a viabilidade da ampla e constante testagem em delegações inteiras — algumas chegam a contar com mais de 70 pessoas entre atletas, comissão técnica, dirigentes e funcionários dos clubes — , e até em relação a responsabilidade de fiscalização desses testes.

A decisão do Campeonato Paulista, porém, escancarou o quanto esses protocolos foram escritos e idealizados apenas de faz-de-conta. Ao recusar efetuar a testagem no elenco corintiano, o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, provou que não há obrigatoriedade de um clube testar seus atletas. É o jeitinho brasileiro dando as caras no meio de uma pandemia.

Por outro lado, se houvesse a obrigatoriedade, a quem caberia a responsabilidade de fiscalização? A CBF seria capaz de punir um time que não apresentasse os testes em dia? Como seria definida uma “punição”? A testagem seria critério de desempate nas competições?

Ironia a parte, os protocolos sanitários de retomada do futebol brasileiro estão longe de serem eficazes e parecem feitos apenas para justificar no papel a volta das competições.

Estádios vazios

O futebol é uma expressão social importante bastante importante no Brasil. Pensar o esporte bretão apenas como modalidade esportiva e ignorar suas ramificações culturais, é um erro.

Por isso, apesar de ainda distante das médias de público europeias, os estádios brasileiros, rodada após rodada, recebem grandes públicos e neste momento, por razões óbvias, os jogos não poderão contar com torcedores.

De cara há uma complicação extremamente delicada que os clubes terão que resolver: a anulação da renda de bilheteria. No Brasileirão 2019, os três primeiros colocados em ocupação de seus estádios e renda foram Flamengo, Corinthians e Palmeiras.

(Foto: Lucas Merçon / Fluminense F.C / Reprodução)

A soma da renda bruta desses três clubes com venda de ingressos superou a cifra de 210 milhões de reais. Apenas o Flamengo faturou mais de 96 milhões. É uma fonte de rendimento vital para a manutenção dos clubes que não poderão contar com esse dinheiro.

Contudo, existe outro lado dessa equação que talvez seja menos mensurável, mas que tem maior potencial de prejuízo aos clubes: o ambiente estéril de estádios sem torcida.

Como expressão social, o ato de ir ao estádio faz parte da cultura do brasileiro. Existe um movimento muito forte de torcedores de arquibancada e isso será reprimido neste momento.

Os clubes brasileiros estão ligados às suas torcidas de uma maneira mais próxima que os times europeus e, por isso, têm uma dependência psicológica maior de jogar em estádios cheios com o apoio de seus torcedores.

Uma outra perspectiva que o futebol apresenta é uma aparente sensação de normalidade e, no momento decisivo das competições, podem acontecer aglomerações pelo país em razão das comemorações de títulos. É um risco a mais num horizonte que não aponta para o controle da pandemia.

Para além dessa questão, a ausência dos torcedores nos estádios colocará o futebol no patamar de distração, de mero engodo, uma espécie de ópio das massas em meio ao terror da pandemia. Aos que conhecem a essência do futebol, refutar essa pecha de futebol como entretenimento é uma missão de vida que os dirigentes resolveram esvaziar.

Sem torcida, o futebol passa a ser única e exclusivamente um produto comercializado à distância, e esse modelo de ainda está em discussão no Brasil, boa parte da população não tem acesso e existe uma questão jurídica a ser abordada.

A MP 984

Ainda sem valor para o Campeonato Brasileiro, por conta dos contratos assinados entre clubes e emissora, a MP 984 é um ponto a ser incluso no debate sobre o retorno do futebol brasileiro à normalidade que não existe.

(Foto: Marcos Corrêa/PR — Fotos Públicas / Reprodução)

No dia 19 de junho, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou a Medida Provisória 984/2020 que, entre outras coisas, mudou a lógica dos direitos de transmissão do futebol brasileiro.

Antes era preciso que os dois clubes envolvidos numa partida concordassem com os termos de uma emissora para que o jogo pudesse ser transmitido na TV. Agora, com a MP 984, cabe ao clube mandante negociar os direitos.

Dessa maneira, na volta do Campeonato Carioca, o Flamengo causou barulho ao transmitir seus jogos no Youtube e anunciar ganhos a partir de contratos individuais de marketing além de doações de torcedores.

Quase um mês depois, em 16 de julho, dezesseis clubes da Série A assinaram um manifesto em apoio à MP alegando que “os torcedores ganham com o fim dos apagões de jogos, com mais craques em campo e com um melhor espetáculo no Brasil. Os clubes ganham com mais liberdade e receitas. E o país ganha com os clubes mais sólidos financeiramente, maior geração de empregos e crescimento de impostos pagos aos governos”.

A ideia pode até ser boa, mas a forma como foi elaborada e como tem sido executada pode piorar a situação dos clubes brasileiros. Em relação à elaboração, pesa sobre a MP o fato de ter sido um ataque político do governo à principal emissora do país que detém há décadas os direitos transmissão, a Rede Globo.

Um acordo costurado entre o Rodolfo Landim, mandatário do Flamengo, e Jair Bolsonaro, selou a assinatura da MP que visa tirar da Rede Globo o monopólio do futebol. Esse tipo de aproximação e condução pode ser prejudicial ao clube, ao governo e ao futebol por misturar muitos interesses extracampo, mas isso é assunto para outro momento.

Nesse sentido, a postura do Flamengo após a nova legislação — negociando sozinho suas transmissões — fatalmente levará ao enfraquecimento do futebol brasileiro, pois não conseguirá repetir os ganhos que teve durante quase 30 anos de contratos gordos com a emissora carioca, em negociações pontuais.

A criação de uma liga entre os clubes que disputam a Série A seria a solução, mas o caminho parece longo ao conhecer o histórico dessa discussão entre os cartolas brasileiros.

Enfim, bola rolando

Quando a bola rolar Campeonato Brasileiro mais complexo da história, a lógica deve fazer o Flamengo conquistar o bicampeonato. Mesmo após perder o multicampeão Jorge Jesus, o Rubro-negro é de longe o clube com melhor elenco do país, que joga o melhor futebol e ainda contará com o enfraquecimento dos principais concorrentes.

Palmeiras e Grêmio perderam para o mercado internacional os dois melhores jogadores do Brasil fora do time da Gávea. Dudu foi emprestado ao Al-Duhail, clube do Catar, e Everton Cebolinha foi negociado com o Benfica.

O Athletico Paranaense pode ser uma boa e justa surpresa na parte de cima da tabela e o rebaixamento tem tudo para ser bastante disputado, mas com um novo visitante, o Santos, que sofre grave crise econômica e técnica, deve lutar contra o descenso.

Por todos esses motivos e outros que podem surgir com o início das competições, o futebol brasileiro se tronou uma tentativa desesperada de voltar à uma normalidade que não existe mais.

Ainda assim, por motivos esportivos, sociais e históricos é indispensável acompanhar o desenrolar dessa edição do Brasileirão que entrará para a história como o Campeonato Brasileiro da Pandemia.

(Foto: Gabriel Leite / Universidade do Esporte)
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