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Opinião

As horas inacabáveis do lado de dentro

Publicado

Foto: Laura Santos

Nesses tempos tenho dormido tarde, a vida está ao avesso. Não consigo evitar essa troca da noite pelo dia, tudo acontece em um tempo que eu desconheço, meu sono, meus pensamentos. Retornar ao habitual é um processo estranho, meu corpo se acostumou a outras horas, horas que inventei para preencher as lacunas do meu dia. Trabalho, leio, escrevo, guardo memórias, revisito imagens. É um tipo novo de entretenimento que criei para mim.

Tenho lágrimas que caem vendo um filme ou um noticiário e a sensação de que a vida já se misturou com a ficção. Tenho alguns medos que disputam espaço, dentro de mim, com a minha esperança, alguns dias em que um se sobrepõe ao outro. Penso por um instante no meu privilégio e o desespero pelos que nada tem. Posso me distrair com muitas coisas, mas se certos pensamentos resolvem permanecer, me perco só de tentar ignorá-los, é impossível.

Foto: Laura Santos

Vejo estatísticas diárias e o aumento de um número que eu não queria que existisse, falam de curvas, de boom, às vezes esquecemos das pessoas. Há momentos em que só sinto a dor de um mundo interrompido. Sem controle de nada, do tanto que não entendemos, da insensibilidade que fala mais alto. Me deparo com o susto diário em relação à natureza humana.

Me deito, penso “tenho que acordar cedo amanhã”, recomeço a minha rotina nova. A verdade é que só posso voltar ao normal quando tudo voltar ao normal, sabendo que nada será o mesmo. Embora meu corpo sinta as mudanças, meus olhos revelem, não há deslocamento mais intenso do que o interno, movimento diário.

Foto: Laura Santos

Faço vídeo chamadas longas, troco mensagens com meus amigos. Cada uma finalizada com um “se cuida”, como um lembrete da importância que temos uns para os outros. Um pedido, do amor profundo. Me vem à cabeça as famílias dos que estão na linha de frente, dizendo o mesmos aos seus filhos, companheiros, pais. Todos temos um motivo para voltar para casa.

Existe zelo mais forte do que o daqueles que cuidam de estranhos? Médicos, enfermeiros, técnicos, todos que de alguma maneira fazem parte da área da saúde. Se doando por alguém cujo nome eles só conhecem no exato momento em que passam pelas portas dos hospitais. E tudo que nos pedem é para que fiquemos em casa, pois com toda certeza, gostariam de nos conhecer em outras condições, mais alegres possivelmente, mais ternas.

Foto: Laura Santos

Cora Coralina foi uma das primeiras poetas que li, ainda criança, lembro de um trecho de sua obra que diz “eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende”. Mais do que nunca a bondade é um exercício que precisamos fazer. Por amor aos nossos, aos nossos dos outros. Pelos abraços que não sabemos se são os últimos, mas tememos.

A cidade só será bonita de novo se a bondade e o amor forem os caminhos usados para voltarmos a ela. Se não, será o reflexo do nosso mais triste lado: o desprezo. É um caminho de volta à vida.

Foto: Laura Santos

Este texto é uma parceria com a Quando Nuvem

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