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Opinião

A lucidez de Isaira Maria

Publicado

Diagnosticada com esquizofrenia, Isaira viveu 30 anos com instabilidade psíquica até descobrir o erro médico

Isaira Maria ama seu aniversário. Ela nasceu dia 29 de setembro de 1959, na Maternidade Januário Cicco, em Natal. É a primeira filha de Isabel Pinto e José Reinaldo. Eles eram recém casados, ambos com 24 anos, quando Isaira veio ao mundo. Ela nasceu na capital, mas dona Isabel e seu José são de Lajes do Cabugi, município da região central do Rio Grande do Norte.

Isaira cresceu em Lajes. Era uma garotinha de pele branca, bochechas rosadas, olhos cor de mel, da mesma cor de seus cabelos, que eram longos e lisos. Quando criança ela tinha uma franjinha bem aparada na testa. Apesar de seu nome ter origem indígena, ela não possui traços de índia.

Isaira quando criança ao lado de seu bolo de aniversário, na década de 60 | Foto: Cedida – acervo pessoal

A infância

Ao longo dos anos ela ganhou três irmãos. Todos com personalidades muito diferentes: Iseneide era uma garotinha de olhos verdes e muito introspectiva; Júnior era o mais levado, gostava de andar de perna de pau e brincar na linha do trem; e o Carlos era o caçula, chamado carinhosamente de “Carlito”.

Os quatro irmãos, da esquerda para a direita: Carlos, Júnior, Iseneide e Isaira. | Foto: Cedida – acervo pessoal

Todos os irmãos frequentavam a escola Instituto Pio X. Uma escola católica, na época dirigida por padre Vicente. Do Instituto, Isaira tem boas lembranças. Todos usavam uma fardinha vermelha e branco. Ela recorda que as meninas vestiam uma saia vermelha plissada e uma blusa branca com o brasão da escola. Ela também se lembra das aulas de religião nas sextas-feiras, dos desfiles cívicos de sete de setembro, lembra também que jogava peteca e brincava de estátua.

Quando se tornou adolescente, Isaira ganhou uma bolsa na antiga Escola Doméstica — uma escola interna para meninas em Natal. Ela veio estudar na capital e em seguida também vieram seus irmãos. Mas a Isaira não se deu bem com as novas colegas de turma. Então, ela pediu a seu pai para estudar na Escola Estadual Winston Churchill, junto com o seu irmão Júnior, onde ela concluiu o ensino médio.

O irmão Júnior

Entre os irmãos, Isaira e Júnior tinham muita afinidade. Em 1980 o Júnior adoeceu. Inicialmente ele foi diagnosticado com pneumonia. Por algum tempo ele foi tratado mas não obteve melhora. Seu quadro de saúde piorou. Ele ficou internado no Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel. Um hospital público, com problemas de hospital público. Quando finalmente Júnior recebeu seu diagnóstico correto, ele estava debilitado. Júnior havia contraído meningite, uma inflamação grave das meninges — as membranas que envolvem o encéfalo (incluindo o tronco encefálico e a medula espinhal) — causada por bactérias.

Enquanto Júnior estava hospitalizado, Isaira recebeu sua visita em sonho. “Júnior disse que sentia minha falta”, ela contou. Na mesma noite do sonho, Júnior veio a óbito. Ele faleceu no carnaval, em fevereiro de 1980. Estava passando um bloco de rua quando a família saiu de casa para ir ao velório. No mesmo instante, as pessoas fizeram silêncio em respeito à família enlutada. Júnior tinha apenas 17 anos quando faleceu e sua partida abalou toda a sua família.

A década de 80

Alguns anos se passaram. Isaira se tornou uma jovem adulta. Trabalhou em diversos lugares e também fez voluntariado no Centro de Valorização da Vida, recebendo telefonemas de pessoas anônimas que estavam aflitas.

1986, aos 27 anos, Isaira trabalhava na antiga Cidade Hortigranjeira, vinculada à Secretaria da Agricultura do estado. Lá ela desempenhou várias funções. Nesse período Isaira foi vítima de assédio e começou a desenvolver sintomas depressivos. Ela contou que sentiu uma tristeza profunda. Passou dias trancada em seu quarto, não queria se alimentar, não tomava banho e não tinha disposição. Um médico psiquiatra muito conhecido em Natal foi consultá-la em casa e deu o parecer: Isaira estava depressiva. O psiquiatra receitou algumas medicações e foi assim que ela começou a fazer uso de remédios tarja preta. Como não obteve melhora, Isaira foi internada em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Natal.

Após a internação, seu quadro de saúde continuava instável. Ela não lembra em que momento exatamente, mas em seguida recebeu o diagnóstico de esquizofrenia. A família não consultou outro especialista, porque confiava nesse médico. Dessa forma, Isaira começou a ser tratada com a medicação para esquizofrenia. Nesse mesmo período ela se aposentou por invalidez.

Sob uso das medicações, não demorou muito até Isaira começar a ter alucinações e ouvir vozes. Ela disse que não sentiu medo quando ouviu pela primeira vez. As vozes falavam coisas para aborrecê-la. Às vezes Isaira retrucava e falava compulsivamente.

Além disso, ela tinha que conviver com as repentinas mudanças de humor. Também lidava com a irritabilidade e a tristeza. Ela passou três décadas vivendo com essa instabilidade psíquica.

Enfim, a lucidez

Por volta de 2018, depois de sucessivas crises e consultas com diferentes médicos, Isaira se consultou com um novo especialista. Após algumas sessões, o novo psiquiatra afirmou que ela não tinha esquizofrenia. O diagnóstico que Isaira recebeu nos anos 80 estava errado. Na verdade, Isaira tem traços de bipolaridade. As vozes que ela ouve talvez sejam alucinações desencadeadas pelas medicações, que foram ministradas ao longo desses 30 anos. Isso foi uma grande surpresa para a Isaira e para a família dela, que, pela segunda vez, foram acometidos por erros médicos.

Hoje Isaira convive com a sua doença e com os efeitos colaterais que ela adquiriu ao longo do tempo. Hoje ela toma a medicação mais apropriada para o seu quadro de saúde e vive de forma estável. Ela é uma pessoa quase normal: Isaira toma banho de luzes apagadas e não sente medo. Assim como não sente medo das vozes que ela ainda ouve de vez em quando.

Agora Isaira é idosa. Ela não mora sozinha — sempre morou com a família — mas é uma pessoa responsável por si. Adora limpeza. Gosta dos programas de TV aos domingos. Se arruma para ficar em casa e recentemente fez compras na SHEIN. Ela gosta de ir ao cinema assistir filmes de comédia e evita lugares lotados. Apesar de tudo que passou, Isaira é uma pessoa carinhosa e muito gentil. Tem facilidade de fazer amigos e é amiga de todos os vizinhos.

No último dia 29 de setembro, Isaira fez 63 anos. A família comprou bolo, salgados e doces para comemorar o aniversário dela. Quando todos estavam confraternizando juntos, Isaira disse: “Vou levar um pedaço de bolo para seu Dedé”. Seu Dedé é um amigo. Ele é um senhor, dono de um pequeno comércio próximo a casa de Isaira. Ele recebeu feliz a encomenda, agradeceu e comentou: Você lembrou de mim!”. Isaira consentiu sorrindo e seu Dedé cantou parabéns para ela, com a ajuda de seus clientes.

Olhar da repórter

Isaira Maria é minha tia. Para ela, ser entrevistada foi revirar um baú de memórias. Nós também reviramos uma caixa de sapatos, cheia de fotos antigas — fotos em preto e branco com bordas onduladas — que agora, foram digitalizadas e algumas fazem parte desse perfil.

Existem pontos relatados na entrevista que eu também vivenciei por causa da nossa proximidade. Sempre quis escrever sobre Isaira, para que as pessoas pudessem conhecer a sua história. Não só a história de uma pessoa que foi vítima de um diagnóstico errado que comprometeu a sua vida. Eu quis escrever sobre a Isaira e suas singularidades. Apesar de ter sido vítima, ela pôde seguir em frente com o apoio da família.

Historicamente, pessoas com problemas mentais vivem à margem da sociedade. Através desse perfil, ressalto que essas pessoas precisam de inclusão, respeito e apoio, por parte da população e do estado.

Por fim, apenas agora, no final do curso de Jornalismo, me senti madura para escrever o perfil de Isaira. É necessário muita sensibilidade para escrever perfis de pessoas anônimas, e tentar fazer jus à riqueza que é a história de vida de cada indivíduo.

Quando finalizei a parte escrita, eu li o perfil para a minha tia. Ela se emocionou bastante e também chorou. Esse material ficará registrado no Medium e também nas páginas da minha vida.

Com amor, Belita.

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