Sociedade
Tijolo por tijolo, uma revolução: a ONG potiguar que desafia o déficit habitacional com afeto e estratégia
Como uma jovem engenheira da periferia de Natal criou um projeto de empreendedorismo social que transforma casas, capacita pessoas e mobiliza comunidades

Quem vê Fernanda Silmara, de 28 anos, comandando mutirões entre tijolos e cimento, talvez não imagine que sua trajetória começou entre goteiras, paredes de barro e cheiro de mofo. Criada na comunidade da Guarita, bairro do Alecrim, Zona Leste da capital potiguar,ela cresceu em uma casa pequena que, devido goteiras, a chuva caía dentro de casa. Dormir no chão era estratégia para evitar o colchão encharcado. “Morava com os pais e cinco irmãos. Por causa da chuva, tinha medo do telhado cair. Nossa porta era só a metade,não dava nenhuma segurança. Aquilo tudo me marcou demais”, recorda.Ainda adolescente, Fernanda percebeu que os estudos poderiam oferecer outra realidade.
Em 2017, ingressou no Instituto Federal do Rio Grande do Norte para cursar técnico em construção de edifícios, onde ganhou uma bolsa e decidiu investir parte do valor em algo urgente: reformar a própria casa. Com a ajuda do tio, que pôs a mão na massa, voltou da aula e encontrou as paredes rebocadas, telhado sem buracos e o piso com cerâmica. “Ali,senti que tinha um lar de verdade”, diz. Aquela vivência se transformou em missão de vida. Ao procurar por projetos sociais que construíssem casas para pessoas em situação de vulnerabilidade, Fernanda não encontrou nenhum. Decidiu, então, criar o seu próprio.
Em 2018, já na universidade, reuniu os amigos Mozart, Rafael, Danilo e Julian e compartilhou com eles seu sonho. Juntos, saíram pelas ruas do Alecrim em busca da primeira casa a ser transformada. Encontraram dona Leila,uma artesã do bairro. A reforma da casa dela foi o primeiro passo do que se tornaria o ReforAMAR: uma ONG que une arquitetura, afeto e mobilização comunitária para transformar moradias e vidas em situação de vulnerabilidade socioeconômica na Grande Natal.


Desde então, o ReforAMAR já entregou 55 reformas completas, realizou 66 ações sociais,mobilizou mais de 1.000 voluntários e impactou direta e indiretamente mais de 50 milpessoas. A equipe fixa tem apenas seis pessoas, mas o alcance se multiplica peloengajamento de quem faz acontecer: moradores, doadores, empresas parceiras evoluntários de diferentes áreas.
Tijolo por tijolo, a organização promove reconexões afetivas. Uma janela, um vaso sanitário ou uma parede com azulejos se tornam sonhos concretizados. “Esses dias, nossa beneficiada Patrícia foi visitar a casa dela, que ainda está em reforma, e chorou ao ver a janela que colocamos no quarto do filho. Ela se emocionou porque agora vai ventilar melhoro espaço dele”, lembra Fernanda.Cada reforma parte da escuta ativa: os voluntários ouvem as famílias, perguntam suas preferências, suas cores favoritas, o que sonham para o lar. “A filha de seu Manuel, por exemplo, nos disse que o sonho dela era ter um vaso sanitário no banheiro. A gente, que tem acesso ao vaso em casa todos os dias, não percebe que isso é um privilégio. Mas tem família que ainda vive sem banheiro, que é o básico”, reflete.Mas o ReforAMAR vai além da moradia digna, ele também impulsiona a inclusão produtiva.
Desde a fundação, o projeto já movimentou mais de R$ 950 mil em reformas, muitas delas em casas onde também funcionam pequenos negócios que, com a infraestrutura adequada,ganham novo fôlego. É o caso de Laura, moradora do bairro Jardim Lola, em São Gonçalo do Amarante. Mãe de Tiele Agatha, uma menina com paralisia cerebral, Laura vivia numa casa apertada, com escadas altas e batentes perigosos. “A gente morava num espaço pequeno, de três cômodos. Subíamos uma escada sem corrimão. Com o crescimento de Tiele, a gente começou a ter dificuldade de locomoção”, conta.
Através do projeto São Gonçalo Acessível, braço do ReforAMAR Acessível, voltado à levar conforto a pessoas com deficiência e idosos com mobilidade reduzida, a casa de Laura foi adaptada por completo. “Hoje, minha filha tem acessibilidade, é totalmente independente. Anda dentro de casa, vai ao banheiro sozinha. Sem eles, isso não seria possível”, diz. Mas a mudança não parou por aí. Laura é empreendedora — dona do Ateliê da Laura, onde faz laços e acessórios infantis. Com os novos espaços adaptados, montou um ambiente de produção com bancada própria, aumentou a produtividade e conseguiu triplicar o número de clientes. “Antes era tudo apertado. Agora tenho um espaço para guardar o material e outro para produzir. Trabalho sem sair de casa, faço meu horário, o que pra uma mãe atípica, é ótimo”, afirma.




Em 2023, o ReforAMAR Acessível reformou mais oito casas, revitalizou uma academia social e construiu uma praça comunitária em São Gonçalo do Amarante, impactando mais de 500 pessoas. E 2025 já começou com conquistas: o projeto foi contemplado pelo Programa de Apoio a Projetos Sociais (PAPS) da Fundação Salvador Arena, garantindo a reforma de mais 20 moradias adaptadas.
Histórias como a de Laura mostram como a transformação é territorial. O ReforAMAR é uma ONG modelo de desenvolvimento local com base na solidariedade, que atua onde o Estado não chega. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revelam que, No Brasil, 3,7 milhões de crianças e adolescentes vivem em casas sem banheiro. Já os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o déficit habitacional do RN ultrapassa 46 mil moradias. É nesse cenário que o ReforAMAR se mantém entre as iniciativas brasileiras de base comunitária com grande relevância quando se trata de transformação em múltiplas dimensões de vulnerabilidade. Liderança feminina e estratégia para transformar territórios de um lado, casas com estruturas precárias e ausência de saneamento. Do outro, a certeza de que transformar realidades exigia começar pelo próprio território. Fernando compreendeu, desde cedo, que promover inclusão produtiva e desenvolvimento local com ações concretas não seria uma tarefa simples. Chegar ao ponto onde o ReforAMAR está hoje — e sonhar com onde ainda pode chegar — tem exigido mais do que boa vontade. Exige estratégia, articulação e, sobretudo, um novo olhar sobre o próprio papel comogestora.
Com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Rio Grande do Norte (SEBRAE/RN), o projeto mergulhou em capacitações como o Impacta Mais e oReGENERA. Esses processos marcaram um ponto de virada para a engenheira. “Se eu tivesse me limitado à obra, o projeto não cresceria”, reconhece Fernanda. Ela percebeu que precisava assumir também o papel de empreendedora: desenhar modelos sustentáveis,estruturar a ONG como empresa, ainda que sem fins lucrativos. Mais do que levantar paredes, Fernanda passou a mentorear e inspirar outras mulheres que desejam empreender, seja no setor social, seja em outros campos. Jovem, mulher e protagonista da própria história, ela transforma não apenas a própria trajetória, mas todo o entorno.
“No meu caminho como idealizadora do ReforAMAR, aprendi que liderança não é estar acima, mas, sim, puxar outras mulheres para subir junto, abrir portas, compartilhar saberes e fortalecer redes”, afirma.Ser mulher e liderar, no Brasil, é enfrentar desafios que ultrapassam os limites do empreendedorismo: são barreiras culturais, sociais e estruturais. “E é exatamente por isso que acredito tanto na força do empreendedorismo feminino”, completa.
Para ela, cada mulher que decide empreender e liderar em seu território aciona um efeito dominó de transformação, e o ReforAMAR tem sido uma das plataformas que impulsionam essasmudanças.Esse reposicionamento estratégico levou à criação de novas frentes de atuação e permitiu à ONG conquistar sustentabilidade financeira.
Hoje, o ReforAMAR conta com receita fixa para manter e ampliar suas atividades.ReforAMAR em expansão: educação, sustentabilidade e impacto social a ONG, pioneira em sua área no Rio Grande do Norte, se consolidou construindo lares deforma consciente e com práticas sustentáveis. Pregos e tintas são reaproveitados, móveis dados como perdidos ganham novos donos, materiais que iriam para o lixo e cimento excedentes de obras maiores passam a ter propósito.
A redução do impacto ambiental é visível e a consciência ecológica incentivada. Com o amadurecimento das ações, novas frentes passaram a sustentar o projeto. Formação profissional, turismo sustentável e apoio ao terceiro setor são os pilares dessa expansão.
O ReforAMAR é também um elo da economia circular. Em 2022, criou o Bazar ReforAMAR, onde é possível encontrar móveis, eletros e roupas com até 80% de desconto em relação ao mercado convencional. Tudo passa por um processo de doação, restauração e revenda. O valor arrecadado é integralmente destinado às reformas. Em 2024, o Bazar foi finalista — e único representante do Nordeste — do Prêmio Impactos Positivos, na subcategoria Tração.

O ReforAMAR Capacita, lançado em 2024, já formou mais de 170 pessoas em áreas como construção civil, arquitetura e engenharia. A primeira turma surgiu dentro do presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta. Quarenta internos aprenderam a produzir blocos intertravados e construíram uma calçada. “Acreditamos no poder da educação para recomeços”, afirma Daniela, engenheira e coordenadora do programa.
Outra frente, o ReforAMAR Turístico, dedica-se à revitalização de espaços com potencial de visitação. Em 2024, ganhou destaque na Feira dos Municípios e Produtos Turísticos do RN,que reuniu mais de 50 municípios e milhares de visitantes.
Segundo o Ministério do Turismo e a EMBRATUR, o estado recebeu mais de 25 mil turistas internacionais no primeiro semestre daquele mesmo ano, crescimento de 27,2% em relação ao anterior.J á o ReforAMAR OSCs é voltado à reforma de outras organizações sociais.
O projeto já atendeu o Lar da Vovozinha, a Associação Potiguar de Travestis e Transexuais e o Instituto Amar. Ao fortalecer instituições que cuidam de pessoas, a ONG amplia seu impacto e estende sua rede de cuidado. Em 2021, o ReforAMAR se formalizou como Organização da Sociedade Civil. Em 2024, foi declarado de utilidade pública pela Prefeitura de Natal,recebeu o Selo de Certificação Social e foi reconhecido pela plataforma Impact como uma das iniciativas de impacto validado na América Latina, alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Em junho de 2025, a ONG alcançou a semifinal da premiação “Organizações de Destaque em Gestão e Impacto Social no RN”, iniciativa do projeto Cultura, ONG e Ativismo (CONGA)e primeira edição estadual do Prêmio Melhores ONGs, um dos mais relevantes do terceiro setor brasileiro. O ReforAMAR concorre ao lado de nomes como a Liga Mossoroense de Estudos e Combate ao Câncer, a Casa de Apoio à Criança com Câncer Durval Paiva e o Instituto Ítalo Ferreira.O próximo passo é expandir. A meta é atingir todo o território potiguar e levar capacitações ao Pavilhão Feminino do Complexo Penal Doutor João Chaves.
Para isso, a ONG busca novas parcerias, especialmente nas áreas de comunicação e marketing, com o objetivo de ampliar sua presença digital e tornar o ReforAMAR ainda mais conhecido e sustentável. As mentorias do SEBRAE-RN foram essenciais na conquista de alianças com empresas que hoje sustentam as ações da ONG. Nomes como o Grupo Duarte, Cimento Elo e Lampadinha oferecem mais do que insumos e logística: compartilham do propósito de transformar vidas por meio da responsabilidade social. Mostram como o setor privado pode ser um agente ativo na promoção da dignidade habitacional e na regeneração das comunidades.Todos nós podemos ser guardiões da mudança, transformar o mundo ao redor é possível, e não precisa de muito para começar. Todos nós podemos ser voluntários, doadores ou apoiadores.
Todas as informações sobre como participar do projeto estão no site oficial.Uma ideia como a de Fernanda, que parecia loucura, já impactou milhares de vidas. Às vezes, o que falta é alguém que acredite. Alguém que tenha coragem de dar o primeiro passo, mesmo sem ter todas as respostas. Alguém como Fernanda, que olhou para a realidade e decidiu agir. E como ela diz: quem vai mudar o Brasil será o próprio povo brasileiro.

