Cultura
Ponto de Ebulição celebra vozes negras e reafirma resistência sonora no RN

O palco do Teatro Riachuelo, em Natal, foi o ponto de partida para uma potente conversa entre memória, ancestralidade e resistência. Coube à cantora e mestranda em Canto Popular Sâmela Ramos abrir, neste sábado (27), a segunda edição do Festival Ponto de Ebulição com o espetáculo Elas Cantam Jazz, em uma celebração às vozes femininas negras, mas também de reflexão sobre o legado invisibilizado de muitas dessas figuras.
A cantora ressaltou que muitos dos nomes que atravessam sua trajetória, embora consagrados, ainda são mantidos à margem da história oficial da música brasileira. Para ela, esse silenciamento ocorre em diversos gêneros, inclusive nos considerados “tipicamente brasileiros”. A reflexão se aprofundou quando a artista trouxe à tona o caso de Johnny Alf, figura central da Bossa Nova, frequentemente ignorado.
“Hoje eu cantei uma música que Leny Andrade interpretou, mas que é de Johnny Alf. Johnny Alf foi considerado o pai da Bossa Nova e pouca gente conhece o Johnny Alf. Que era um homem negro, homossexual, e todo mundo se refere à Bossa Nova, à classe média branca do Rio de Janeiro, mas não. É música negra”, pontuou.
Mais que um espetáculo, Elas Cantam Jazz se constituiu como manifesto musical, reafirmando a potência de artistas como Rosa Passos, Tânia Maria, Leny Andrade e outras vozes que moldaram, e seguem moldando, uma identidade musical forjada a partir da resistência. Sâmela Ramos reconstrói esse legado com voz própria, reverenciando a ancestralidade e projetando um futuro onde o protagonismo feminino negro ocupe o centro da cena.
Versos do Sentir uniu três representantes do samba potiguar

A segunda atração da noite no Festival Ponto de Ebulição foi marcada por um encontro inédito e comovente entre três intérpretes de trajetórias distintas, mas entrelaçadas pela paixão e pelo compromisso com o samba: Will Barros, Edja Alvess e AnaLuh Soares. O espetáculo Versos do Sentir foi concebido especialmente para o festival e mergulhou o público em um repertório de sambas que atravessam memórias afetivas, ancestralidade e experiências de vida.
Sem nunca ter se limitado a um único gênero, Will, carioca erradicada em Natal há quase três anos, explicou que foi o samba que a acolheu artisticamente na cidade. “Eu confesso a você que eu nunca decidi cantar só samba, sempre fui uma intérprete de vários ritmos, mas o samba me acolheu em Natal.”
Foi dessa conexão afetiva e do desejo de dar forma a emoções antigas que nasceu o show apresentado no festival. “Eu tenho uma frase já de muitos anos dentro da minha carreira que é: eu canto Versos do Sentir. Um dia eu falei isso numa roda de conversa e isso me acolheu muito, essa frase me envolveu. Eu falei: esse é o momento de lançar o show Versos do Sentir.”, diz Will Barros.
Com 26 anos de estrada, Edja Alvess é uma figura respeitada na cena musical de Natal, com presença frequente em casas de show e projetos culturais. Sua relação com o samba veio com o tempo, depois de uma trajetória iniciada em outros gêneros. “Eu tenho essa referência, vim cantar samba acho que com 10 anos de carreira, e estou com 26 agora. Essas canções foram baseadas em um repertório de anos, de se identificar com as músicas…”
Durante o espetáculo, Edja interpretou clássicos como O Canto das Três Raças, eternizado por Clara Nunes. “É uma escolha que todo mundo sabe cantar, então é além do que a letra representa. O fato que as pessoas conhecem e vão cantar junto também [influencia na escolha].”
AnaLuh Soares, sambista por essência, representa com orgulho as raízes do samba natalense. Sua presença no festival carrega um forte simbolismo. “É importantíssimo, né? Essa mistura toda [dos gêneros], essa coisa de reunir vários estilos, várias coisas num palco só e dar esse leque de oportunidades do público poder assistir e contemplar.”
Com um discurso contundente sobre identidade e resistência, AnaLuh pontuou o quanto estar em um palco como o do Teatro Riachuelo representa uma conquista coletiva. “Eu sou sambista, né? Eu me considero sambista, só canto samba. E pra mim é muita coisa. Eu nasci, me criei e foi no samba, né? Então, assim, cantar no Beco da Lama, poder levar o samba ali nas suas raízes, Rocas, Mãe Luíza… E também poder estar no Teatro de Riachuelo, né?”, ela afirma ainda que, o samba estar ocupando este espaço é fazer o que ele sempre fez, resistindo.
“O que que a gente sente? Muita felicidade, né? Porque, querendo ou não, o histórico todo, o samba tem aquela coisa assim de estar sempre ali na marginalidade e tal, né? Sofreu tanto preconceito e a gente resistiu. Então, quando a gente pisa no palco do [Teatro] Riachuelo, a gente se sente vitoriosa. A gente se sente ali resistindo.”
AnaLuh conclui: “A gente sabe que não é fácil cantar alguns estilos. Ainda mais aqui no Nordeste, a gente sabe que algumas coisas predominam, um forrozinho ali e tal, mas a gente está aqui, firme, forte, e seguindo na luta, no samba, resistindo e resistindo.”
Taj Ma House e Cida Lobo encerram

O encerramento do festival foi marcado por uma explosão de energia e mistura de gerações. O grupo Taj Ma House, nome emergente da cena alternativa potiguar, subiu ao palco com participação especial da cantora Cida Lobo, lenda viva da música natalense. A apresentação foi uma celebração do encontro entre a tradição da música preta e a eletrônica contemporânea, traduzindo o conceito de travessia sonora proposto pela curadoria.
Banda composta por Janvita, Clara Luz, Elisa Bacche e Frank Aleixo (Pajux), o Taj Ma House combina house music, percussão ao vivo e vocais poderosos, resultado de experiências na cena clubber e influências afro-brasileiras. Após lançamento do single “Tem que ter house”, em julho, e uma Eurotour, o grupo vem se firmando como um dos projetos mais ousados da cena local.
Sobre a escolha de convidar Cida Lobo, Clara Luz explicou: “A gente optou por Cida porque é um nome conhecido da cidade, da velha guarda. A ideia era conectar a nova geração com uma figura histórica.” A parceria foi imediata e potente. “Os ensaios foram maravilhosos. A gente se conectou de primeira. Ela está fazendo vocal em duas músicas nossas, e a gente também canta uma música dela”, completou.
Além da música, Clara destacou o simbolismo do festival. “Todos os artistas são da cena local, artistas que dificilmente teriam acesso a um palco como o do Riachuelo. O festival oferece estrutura, respeito e projeção.” Durante o show, foi ainda anunciada a data de lançamento do primeiro EP do grupo: 16 de outubro.
Ponto de Ebulição
Sob curadoria de Nathalia Santana, da Pinote Produções, o Festival Ponto de Ebulição reafirmou em 2025 seu compromisso com qualidade técnica, representatividade e acesso gratuito à cultura. Mesmo com o orçamento reduzido pela metade em relação à edição anterior, a curadora explica que a equipe optou por concentrar a programação em um único dia, sem abrir mão da profundidade artística nem da coerência curatorial.
A decisão orçamentária, no entanto, resultou em escolhas ainda mais assertivas. “Acho que essa escolha nos fez ser ainda mais assertivos na curadoria, entendendo que a gente precisava de fato propor uma coisa que fizesse sentido de maneira integral”, explicou Nathalia. A proposta desta edição foi desenhada como uma travessia sonora, guiada pela música preta em suas diversas linguagens e nuances, do jazz ao samba, passando pela house music, com o protagonismo de artistas potiguares em todas as apresentações.
