Opinião
Os lutos que ninguém vê
Os lutos diários não têm nome, não ganham flores, não reúnem testemunhas, não têm cerimônia fúnebre. São invisíveis por fora, mas, por dentro, latejam silenciosamente.
Luto é, no fundo, a dor de perder o que foi importante. Não importa o quê. Nem quem. Nem o tamanho. Se era importante e se perdeu, dói. E não há preparo capaz de amenizar; pelo contrário: a dor se agrava quando a perda nos surpreende, nos pega sem vigilância, chega sem aviso prévio. Isso escancara nossa condição humana: a impossibilidade de reverter, de controlar, de evitar. A dor tem ritmo próprio. E o que não tem remédio, remediado está.
Os lutos invisíveis e diários coexistem com o cotidiano: enquanto sorrimos, enquanto funcionamos, enquanto damos conta das obrigações. A vida não espera nossos processos; simplesmente acontece. E isso nos empurra a ressignificar partes de nós que já não nos servem ou que não podem mais nos servir como antes.
Dia após dia, morremos pequenas mortes: detalhes perdidos, expectativas quebradas, sonhos desfeitos, presenças que viram lacunas. A vida se desfaz e se refaz silenciando o grito interno que aprende, por necessidade, a ser discreto e inaudível para o mundo.
Sem a morte física, ressignificar tem outro peso, porque é preciso aceitar que o que importava já não cabe mais, ainda em vida, e quase sempre por escolha – nossa ou do outro. É engolir o fato de que, em certos momentos, não bastamos, não somos suficientes ou simplesmente não encaixamos, não importa o quanto de energia e esforço que tenhamos empregado. E, mesmo assim, manter firme a fé em quem somos, como uma âncora fincada no mar: entre as glórias e os reveses das ondas, permanece ancorada, com a base firmada no fundo.
O luto que ninguém vê nasce da perda silenciosa da confiança cotidiana, aquela que virou relíquia, um vestígio démodé, numa era em que já não sabemos se o que se diz é realmente o que se queria dizer ou apenas comodidade. Nasce de uma ideia que precisou morrer. Do fim do eu idealizado. Do encontro que não aconteceu. Da palavra que não ouvimos. Do lugar em que acreditávamos estar e descobrimos que não estávamos. Dos planos simples que não vingaram. Das relações que não se sustentaram. Daquilo que começa, para, recomeça e nunca encontra respiro – segue como um rastro, um ciclo sem fim, girando em volta do eterno retorno.
O luto que ninguém vê também nasce das perdas naturais, inevitáveis, que vêm apenas por estarmos vivos, que se impõem sem autorização nenhuma e, ainda assim, nos convocam – ou melhor, nos intimam – à coragem de seguir.
Mas há um luto especialmente delicado: o luto pelos lugares emocionais que ocupávamos no outro e pelo espaço que o outro ocupava em nós. Sair da prioridade para o último lugar na sala de espera da vida de alguém importante é como uma amputação de emergência sem sedativo.
Não é apenas o luto pelo posto perdido: é o colapso silencioso do que foi e do que poderia ter sido. É ver escorrer entre os dedos o que imaginamos, nutrimos, sonhamos. E nunca é só sobre o outro. É, sobretudo, sobre a gente. É perder um pedaço de nós mesmos e sobre um jeito de estar no mundo que, de repente, já não encontramos mais espaço.
Constatar que morremos na vida de alguém importante é uma dor tão profunda que sequer encontra vazão. É morrer para o outro e continuar vivendo para si. Mais dilacerante ainda é o outro lado da moeda: o peso de precisar enterrar, ainda vivo, o amor que insiste em permanecer. Afinal, não fomos intimados a agir com coragem? Essas perdas caem no nosso colo sem consentimento e, ainda assim, nos deixam o dever de sepultá-las com consciência – mesmo em silêncio, mesmo com uma dor que implode, sem tempo ou espaço para extravasar.
É uma dor que não tem forma, não tem nome, não é reconhecida. Não vejo palavra capaz de alcançá-la. Há dores que, por natureza, são indizíveis. Por mais poética que seja a língua portuguesa, não há arranjo que as capture. Tenho para mim que há dores que seguem o fluxo do enigma e, por essência, permanecem indecifráveis. Apenas são… São implacáveis.
Na arena da vida, não por pessimismo, mas por honestidade, a regra é clara: perdemos quase sempre. No jogo. No amor. Nos planos. Nos argumentos. Nas relações. Nas ideias. Nas impressões. Nas deduções. E, com menor aleatoriedade, perdemos a admiração, o amor, o tesão, a vontade de estar junto, o brilho, o outro. E, se não estivermos atentos, nos perdemos de nós mesmos, suavemente, como quem nem sente.
Então chega o único afeto que não mente: a angústia. Ela entra sem pedir licença, sem cerimônia, sem cuidado. Quase tudo na vida que nos chega, nos é imposto. Não somos tão relevantes quanto pensamos, e nossa opinião beira à insignificância – para não dizer que é totalmente insignificante diante do que se apresenta.
Às vezes, penso: seria milagre ou apenas anestesia o que nos impede de sucumbir de vez aos lutos cotidianos? Resolutivos que somos, só queremos um botão que nos alivie, mas, para nossa surpresa, ele não existe e, até agora, não foi inventado. Nem a inteligência artificial decifrou, ainda. A única saída é ir além do que vemos, é fazer a travessia.
Se pensarmos em utilizar a força como instrumento, eu diria que ela, por si só, é bruta: simplista, sem traquejo, sem sabedoria. Não seria uma boa escolha, talvez nem um caminho. A via que penso, eu suspeito, está na verdadeira resiliência: não a que nos devolve intactos ao ponto de partida (seria inviável), mas a que nos permite seguir, mesmo deformados pela dor, mas não corrompidos, nem determinados por ela. Apesar dela.
A resiliência posta em prática nos ensina a respirar bem dentro das próprias cicatrizes, sem se tornar a própria ferida aberta: dolorida, amarga, incômoda, que é ferida, mas também fere. E isso considero uma elegância chiquérrima, conquistada apenas por quem soube navegar para além das águas mais turbulentas dos mares da vida.
A força, talvez, seja inata; mas a resiliência nasce das vivências em que somos compelidos a resistir e, ainda assim, encontrar sentido, direção e ímpeto. Ancorar-se na resiliência, para mim, é tornar-se infalível. É vencer até a força avassaladora da vida. É aqui que deixamos de apenas receber as intempéries no colo. Aqui acontece a virada de chave. Aqui, a vida precisará considerar nossa decisão de continuar, de contornar, de triunfar. É o triunfo da vida sobre a vida ou, talvez, apesar da vida.
Saber, eu sei. Acreditar, eu acredito. Fazer uso? Sigo tentando. Assim como você. A resiliência é bonita porque nos dá a chance de nos encontrarmos conosco, de nos autocentrarmos, de retornarmos à base firme para não sucumbirmos à frieza das pequenas e grandes perdas diárias.
Porque luto pressupõe luta. Lutar demais cansa. Cansaço leva à proteção. Proteção leva ao afastamento. Afastamento leva à insensibilidade. E o sofrimento, de tanto doer, passa a não doer mais. Não porque foi curado, mas porque congelou, ficou dormente e anestesiado pelo medo.
Afinal, é sempre mais fácil construir uma gaiola emocional, evitar o mundo, do que deixar os sentimentos voarem livres e se chocarem com a dor. Mas tenho uma pergunta real: seria mesmo possível viver jogando menos, amando menos, desejando menos, acreditando menos, com tesão de menos e sendo cada vez menos de nós mesmos?
Achamos, acreditamos e queremos que sim. Mas sabemos que não. Afinal, a angústia nos alcança, onde quer que estejamos. E a angústia não mente, lembremos mais uma vez.
Mesmo quando os lutos nos devoram e sufocam, ainda assim é preciso – por respeito a nós – entrar na arena, lutar o que nos cabe, viver o que nos toca, dançar o que nos condiz. A vida não concede nem um segundo para vivermos o que não vibra e amarmos o que não canta dentro de nós.
Entrar na arena não para vencer, mas para não paralisar e escapulir. O que é ganhar ou perder uma luta ou uma vivência, quando só o ato de estar na arena já significa ganhar a vida inteira?
No fim, não temos nada além do nosso coração. E, dentro dele, sim, há dureza, há perversidade, há sombras. Todos carregamos. Mas renunciar ao que há de bom para evitar sofrer? Parece uma decisão acertada, mas, se pensarmos um pouco, seria a vitória definitiva do banal.
É verdade que precisamos guardar o nosso coração. Mas guardar o coração não é endurecer. É escolher em qual lugar apostar, em que (m) permanecer inteiro, em que (m) vale a pena estar. Não nos confundamos.
Porque o mal e a evitação daquilo que pode nos causar dor são previsíveis, rotineiros e, à primeira vista, até óbvios. O verdadeiro mistério habita o bem: o bem como potência, como força transformadora, como escolha cotidiana de não desertar de si. Não falo do bem ingênuo, mas do bem corajoso, que ousa amar, que se arrisca a confiar, que se dispõe a permanecer.
Talvez, só talvez, a vida inteira seja isso: não um caminho para se proteger da dor, mas uma aventura arriscada e imprevisível entre o risco de sentir plenamente e a ilusão confortável de se afastar. Viver no risco não oferece garantias, mas, ao atravessá-lo, encontramos a vida em si, com suas alegrias, dores, incertezas e intensidades.
A ilusão de se afastar, por sua vez, garante a ausência da dor — e a ausência da própria vida. É ficar pela vida esperando-a acabar. Suspeito que vivemos num pêndulo, oscilando entre dois polos, quase nunca no meio. Não por fraqueza, nem por escolha consciente, mas porque, talvez, esses sejam os únicos pontos possíveis.
Muitas dúvidas. Poucas respostas. Mas uma certeza existe: mesmo entre perdas, dores e vazios, seguimos. E não de qualquer jeito. Não com àquele “segue a vida” que escutamos quando passamos por alguma dificuldade, que mais é uma violência travestida de sei lá o que. Não porque sabemos para onde, como ou os porquês. Mas porque, apesar de tudo, permanece em nós uma natureza indomável, que excede qualquer entendimento racional: a de não desertar de si.
Seguimos, não manobrados pelos lutos e dores, mas caminhando ao lado deles: estarão sempre ali, mas não mais definirão, nem determinarão os nossos passos.
Os segredos e mistérios são muitos. Talvez, apenas, baste reconhecer que eles existem, mas que também existimos, somos mais espirituosos, flexíveis e, queiramos ou não, nosso espírito está sempre além. Além do que está posto. A dor nos percorre, nos cruza, mas não nos arremata e nem declara nenhum ponto final.
O outro lado da moeda da vida – em que mora a resiliência e a teimosia boa – segue a vida soberana e, se falasse, diria, em todas as circunstâncias e com todas as letras: “eu sou.”
