Sociedade
Os desafios de estar em home office durante a pandemia
Cinco pessoas que vivenciaram essa experiência contam como isso afetou na sua produtividade e saúde mental
Em 26 de Fevereiro de 2020 foi confirmado o primeiro caso de coronavírus no Brasil, naquela época não era possível visualizar as proporções que o vírus viria acarretar em nossas vidas. Hoje, nove meses após a confirmação do primeiro caso, vivemos uma realidade completamente diferente: home office, ensino remoto, e chamadas de vídeos com familiares e amigos passaram a fazer parte de nosso cotidiano. Conversamos com cinco trabalhadores que tiveram de enfrentar o home office para trazer uma questão que é pouco discutida nos dias de hoje: a saúde mental.
Friedda: Nesses oito longos meses trabalhando e estudando de forma remota e de certo modo, passando mais tempo sozinha e em casa, percebi que eu sei e adoro estar comigo mesma, ter um quality time e saber aproveitá-lo da melhor forma. As coisas só se complicam quando a gente olha para o lado e percebe que estamos demasiadamente só por meses e sem muita expectativa de quando voltaremos a sair por aí sem tanta preocupação. Sinto falta do toque, abraços, conversas e da empolgação dos meus colegas ao final do expediente para irem para suas casas, do circular lotado, das aulas presenciais, de ver pessoas que eu só conseguia encontrar em lugares específicos (faculdade ou trabalho). Sinto falta dos encontros, casuais ou não, com meus amigos. E estou até hoje buscando formas de lidar, porque querendo ou não a gente vai se adaptando, encontrando formas para estar perto, mesmo que fisicamente longe.
Tony: Desde que tive a ideia dessa pauta e chamei Friedda para escrever essa reportagem comigo eu sabia que devíamos começá-la com sua fala. Friedda sabe exatamente como é estar em home office e estudar ao mesmo tempo. Poderia ser uma dos cinco personagens que dão vida a essa reportagem. Eu mesmo poderia! Além de aluno do quarto período de jornalismo, sou bolsista de um projeto de pesquisa, mas hoje nós não somos os protagonistas das próximas páginas. Como futuros jornalistas, resolvemos exercer nosso papel da melhor forma: dando vozes à outras pessoas que dificilmente seriam ouvidas. Maria Isabel é irmã de Pedro Eduardo, alguém muito especial que por vezes me salvou de mim mesmo e de pensamentos difíceis durante a pandemia. Pedro Henrique (sim, minha vida é cheia de Pedros) é um dos meus amigos mais próximos, o conheci na primeira semana que cheguei na UFRN e ele me acompanha desde então. Essa não é só a história da Maria Isabel e do Pedro Henrique, mas também do Doraci, da Jennifer, da Ediana e de outros brasileiros que se sentirão representados nesses nomes, nessas histórias.
“Eu senti muito remorso. Queria sair com ela, brincar e desenvolver seus músculos para ela andar, mas não podia fazer isso.”
Maria Isabel da Silva Oliveira tem 22 anos e trabalhava desde janeiro de 2019 no Contact Center, da Riachuelo, em Natal. Seu último cargo, que cumpriu durante o home office na pandemia, foi o de consultora de qualidade.
“Confortável, mas estressante”, é assim que Maria define sua experiência no home office. Uma das primeiras dificuldades que ela conta é a ausência do equipamento adequado para realizar o trabalho. Maria teve que fazer tudo de seu computador, já bem desgastado, e isso acabava afetando seu desempenho.
Maria mora apenas com seu irmão, Pedro Eduardo, e sua filha, Ágatha, de um ano. Sendo assim, existia um novo cenário, o de cuidar de sua filha e ainda assim, cumprir as metas do trabalho. Perguntamos o lado bom e o ruim de ter sua filha tão perto. “Foi muito bom estar com ela, acompanhar todo o crescimento, porque se eu estivesse trabalhando presencialmente eu estaria longe dela por 8h e perderia muita coisa. Perderia os primeiros passos, as primeiras palavras, então nesse quesito foi perfeito. Mas por outro lado, tem todo o estresse. Ágatha não tinha como entender essa situação, então ela chorava, queria meu colo e estar nos meus braços o tempo todo, aí eu tinha que ficar com ela, e ouvir uma ligação e isso me esgotava.”, explica. “Eu acho que isso talvez tenha afetado o desenvolvimento dela, porque ela veio começar a andar só agora, mas eu sei que essa minha rotina estressante veio a retardar o início dos primeiros passos dela, porque eu ficava no quarto com ela, botava ela no berço e ficava no computador. Ágatha não queria, ela tava na fase de querer sair, de descobrir o mundo e eu não podia deixar, porque ela é um bebê e precisa de supervisão e eu não podia dar isso. Eu senti muito remorso, queria sair com ela, brincar e desenvolver seus músculos para ela andar, mas não podia fazer isso.”, completa.
Além de trabalhar e ser mãe, Maria também estuda. Está no sexto período de Engenharia Elétrica, pela UFRN. A rotina estressante do home office também afetou isso. “Às vezes, eu não conseguia dividir muito bem os horários, então não conseguia nem trabalhar direito, nem estudar. Chegava o final do dia e eu estava morrendo de dor de cabeça, mas tinha que dormir e acordar para começar tudo de novo no outro dia.”, conta.
Há um mês, Maria pediu demissão e deixou o emprego. Ela resolveu focar em seus estudos. Vai se mudar com Ágatha para Portugal, onde sua mãe mora, e fazer mestrado por lá. Atualmente seus planos se resumem a isso, uma expectativa crescente para o futuro, que depende apenas da chegada de seu visto para que isso aconteça.
“Eu não sou uma porta, sabe? Não consigo ser e agir como uma. Eu tenho sentimentos.”
Pedro Henrique Basílio tem 22 anos e trabalha desde dezembro de 2019 na Teleperformance, em Natal. Ele desempenha a função de Expert em Interação e fica responsável por atender os clientes do PagSeguro. Trabalha na escala 6 por 1 (trabalhando 6 dias na semana e folgando em 1), cumprindo 6h20min de carga horária por dia.
Foi em abril, por conta da pandemia, que Pedro teve que deixar sua rotina na empresa para ficar em casa, no home office. “Os 3 primeiros meses foram ótimos. Era bom poder ter tempo para fazer outras coisas, mas depois, com a rotina, virou um inferno! Eu basicamente acordava, saía da cama, ia para o computador, voltava para a cama e assim ia, num ciclo sem fim. Solitário.”, conta. Pedro fala que a solidão foi um dos principais fatores que foram contribuindo para o seu desgaste físico e principalmente, emocional. Antes da pandemia, existia a presença de vários colegas de trabalho que ficavam ao seu lado e podiam conversar sobre os problemas corriqueiros do trabalho e até mesmo sobre outras coisas para distrair um pouco da rotina estressante.
Pedro, além de trabalhar, estuda. Está atualmente no sexto período do curso de Filosofia, na UFRN. Sendo assim, em setembro teve que encarar outro cenário: o ensino remoto. Ao perguntarmos sobre como ele conseguiu conciliar as duas coisas ele não pensa nem duas vezes e responde: “Eu não consegui, né?” e prossegue: “Eu pensava que o EAD ia ser tranquilo, coloquei 6 matérias, mas estava completamente iludido. Os professores passavam textos e mais textos para ler e eu ainda tinha que assistir as aulas. Tinha momentos que eu sequer terminava meu horário de trabalho e já precisava abrir o Google Meets para assistir as aulas. Dobrou o tempo que precisava passar no computador e a pressão também, isso acarretou muito em minha ansiedade. Fazia anos que não tinha uma crise de ansiedade e dessa vez, voltou com tudo.”
Além do trabalho e a faculdade, o próprio cenário pandêmico contribuiu para fragilizar ainda mais a saúde mental de Pedro. Ele relembra um caso que o marcou durante o home office na pandemia: “Era uma mulher que estava ligando desesperada, chorando, porque não estava conseguindo sacar um dinheiro e ela precisava dele porque seu marido tinha acabado de morrer, com o covid. Eu fiquei paralisado. Queria chorar também. Não estava preparado para isso. Eu não sou uma porta, sabe? Não consigo ser e agir como uma. Eu tenho sentimentos. Foi muito difícil ouvir aquilo.”
Pedro procurou ajuda profissional, a um psicólogo, passou a tomar remédios e ganhou um atestado. Passou alguns dias longe do trabalho. Recentemente, resolveu voltar a trabalhar presencialmente na empresa que continua funcionando, mas com os devidos cuidados. Quando perguntamos o porquê da escolha em sair do home office, ele responde: “É engraçado, né? Eu senti que mesmo com todos os problemas, voltar a trabalhar presencialmente, seria mais fácil. Estar perto de pessoas novamente me faria melhor. E tem feito.”
Pouco antes de encerrarmos a conversa, perguntamos como ele está se sentindo hoje, como está lidando com tudo isso. Ele responde: “Estou bem. Estou me sentindo melhor. O contato humano tem me salvado.”
“Mudar nunca foi um problema para mim”
Doraci Marques tem 28 anos e é supervisor de operações de uma Contact Center em Natal, ele conta que passou a trabalhar em home office por uma decisão da empresa quando foi decretado o isolamento. “A princípio, apenas as pessoas que já possuíam uma estrutura para trabalhar de forma remota foram liberadas e assim, a empresa disponibilizou equipamentos e as ferramentas de trabalho para que nós, colaboradores, conseguíssemos realizar o nosso trabalho em casa, diminuindo assim a quantidade de pessoas trabalhando presencialmente e conseguindo respeitar as normas de espaçamento, vigilância sanitária e fazendo com que as pessoas estivessem, de certa forma, mais seguras.”
Essa transição do trabalho presencial para o home office foi um tanto desafiadora para ele que trabalha com gestão de pessoas e muitas vezes necessita de um contato mais direto com os seus agentes e colegas de trabalho. “Muitas vezes a gente precisa olhar, sentir, conversar… As pessoas às vezes precisam desabafar comigo, então eu precisei me adaptar para tentar gerir essas pessoas de longe, mas sendo a mesma pessoa que eu sempre fui pessoalmente, para que não perdêssemos o foco e eu não perdesse as rédeas da minha equipe.”
Doraci fala que no final de março ele conseguiu ter sua equipe toda trabalhando de forma remota, com mais segurança, porém com mais desafios pela frente. Mas ele não desanimou e buscou manter todos unidos visando o mesmo propósito como um time, que é como ele costuma chamar sua equipe de trabalho. “Me animei quando vi que conseguimos acessos e computadores para manter o resto do time que ainda estava indo para a empresa, em casa. Saber que eles também estariam mais seguros me deixou mais tranquilo, mesmo sabendo que seria um desafio enorme pois já estávamos passando por alguns problemas devido a perda de acesso às ferramentas de trabalho com as pessoas que estavam trabalhando de casa.”
Apesar de todos os desafios que o home office trouxe, ele diz que já não sabe mais o que fazer quando as atividades voltarem de forma presencial, pois conseguiu se habituar à sua nova rotina e diz estar feliz dessa forma. “Costumo dizer que já preenchi tanto o meu dia com trabalho, faculdade e um tempo para treinar, que já nem sei se estarei preparado a voltar à antiga rotina.” Porém, ele também fala que para conseguir lidar com isso ele, ele precisou entender que sua casa se tornou hoje o seu espaço de trabalho, de descanso e estudo e que muitas vezes é confuso de entender, mas se faz necessário.
Doraci conta ainda que desde que se iniciou o isolamento, o seu emocional foi um tanto abalado, mesmo tentando se manter firme, ele fala que também passou por momentos de muita confusão mental, ansiedade e desejo de mudanças físicas. “Resolvi mudar o cabelo, depois voltei atrás, mudei minha barba, engordei, decidi emagrecer, eu sorri, chorei, mas consegui identificar o que vinha me incomodando e isso foi até bom, porque me ajudou a compreender mais quem eu sou.”
Ao final ele agradece pelo convite e diz que talvez fiquemos um tanto impressionados com a sua linha de pensamento sobre o cenário, mas ele ressalta que sempre buscou ser muito positivo e gosta de mudanças. “Mudar nunca foi um problema para mim, sinto muito o fato de ter mudado nessas condições, mas busco sempre acreditar que algumas mudanças acontecem no tempo certo.”
“Eu sinto muita falta do que antes era comum.”
Jennifer Araújo tem 21 anos e trabalha há um ano e oito meses como Agente de Atendimento em uma Contact Center em Natal, ela diz que nesse tempo de empresa já chegou a trabalhar em dois produtos, mas atualmente está responsável por prestar suporte aos usuários do Uber Eats.
Ela conta que passou por algumas dificuldades quando começou a pandemia e percebeu que tudo era mais sério do que ela poderia imaginar. Isso porque a mesma se enquadra no grupo de risco e chegou a ficar hospitalizada durante o momento em que estávamos no pico de casos confirmados de Covid-19. “Fiquei dias preocupada em estar no hospital e acabar me contaminando, às vezes eu nem conseguia dormir só pensando. Foram momentos horríveis porque o medo tomava conta.” Depois do episódio, ela diz que chegou a ficar alguns dias afastada da empresa, pois eles deram dias de afastamento ao pessoal que se enquadrava no grupo de risco, porém isso tinha prazo e ela retornou e precisou ficar comparecendo todos os dias até que começaram as liberações de acesso ao home office.
Segundo ela, essa liberação só aconteceu pois a empresa foi muito pressionada a cumprir as normas de distanciamento social e houveram casos em que a mesma foi mencionada em algumas reportagens sobre o não cumprimento do decreto. “Com muita luta e depois de algumas visitas policiais, a empresa começou a liberar as pessoas para o home office, e eu como sou do grupo de risco consegui ser uma das primeiras a começar a trabalhar em casa”.
Mesmo sabendo que seria o mais seguro para ela, Jennifer diz que logo no início começou a sentir as diferenças do trabalho em casa para o presencial, na empresa. Ela relata que antes seguia uma rotina totalmente diferente da que tem hoje e sente falta do contato com as pessoas. “Antes eu saía de casa pela manhã para trabalhar e só chegava à noite, depois da aula da faculdade. Eu vivia ocupada e até sentia que os dias passavam mais rápido, e hoje, por morar sozinha, eu sinto falta do contato, das conversas com meus colegas, das confusões na faculdade, do percurso até em casa… Nunca imaginei que diria isso, mas sinto mesmo.”
Ao ser perguntada sobre como ela está hoje, ela revela que também foi diagnosticada recentemente com síndrome do pânico e que está em tratamento, mas que não vê a hora disso tudo passar e poder voltar a ter um pouquinho do que ela tinha antes, inclusive o contato físico com as pessoas que ela ama. “Eu sinto muita falta do que antes era comum.”
“Quem tem criança sabe que tudo é mais complicado.”
Ediana tem 30 anos, é mãe e também trabalha em uma empresa de contact center em Natal. Ela conta que desde que recebeu acesso para trabalhar em home office ficou bastante apreensiva em como faria para se organizar e ter uma rotina estando 24 horas em casa, trabalhando e cuidando de seu filho. “Nunca vivi algo assim, sempre trabalhei fora e meu filho ficava com minha mãe, hoje eu preciso dar um jeito para conciliar tudo estando em casa.”
Há cerca de oito meses ela vem trabalhando de forma remota, com os equipamentos que a empresa forneceu para realização do trabalho. Segundo ela, houve uma preocupação muito grande por parte de todos os colaboradores e ela se inclui nisso, em perder seus empregos, mas a mesma conta que a empresa sempre foi honesta e prestativa em deixar os empregados cientes e prestar apoio. “Meus colegas e eu ficamos com muito medo dessa história de home office, no início achamos que em poucos dias seríamos dispensados pois a empresa não ia saber manter esse formato, mas até então eles sempre nos prestaram apoio e vem dando certo.”
Ela diz ainda que nesse período em que está há mais tempo em casa, encontrou algumas dificuldades em se habituar e conciliar suas obrigações, principalmente no seu horário de trabalho, nas tarefas de casa e nos cuidados com o filho. “Quem tem criança sabe que tudo é mais complicado. Eles querem e precisam de atenção… Às vezes estou trabalhando e meu filho quer mexer no computador, sobe na minha perna, chora, quer brincar e eu tenho que lidar com isso, é normal, mas admito que não é nada fácil porque sinto como se não estivesse sendo 100% no trabalho e na empresa eu não tinha problemas com isso.” Mas ressalta que mesmo com os contratempos, busca sempre seu melhor, tanto como mãe, quanto como trabalhadora.
Sobre seu lado emocional, Ediana diz que o tempo em casa não a abalou muito nesse quesito, pois sempre foi uma pessoa de poucos amigos, convive mais com seu filho, mãe e irmãs e nunca foi de sair tanto também. “Nunca fui muito de sair, meu círculo de amigos é muito pequeno, então eu não senti tanto impacto no isolamento social. Mas o que me afeta mesmo é ligar a TV e todos os dias ver as atualizações do número de pessoas que estão morrendo em decorrência do Covid, isso me deixa triste e preocupada, não tem como não ficar.”
Ao final da conversa, Ediana pega o filho Davi no colo e pede para ele dar “oi” para nós que estamos do outro lado da câmera e abrimos um sorriso de imediato ao vê-lo.
Produzido com intuito acadêmico e adaptado para a publicação. Pauta crucial da disciplina de Jornalismo Literário, na UFRN.