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Com a palavra, Luiza

O direito de existir sem ser útil

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Foto: Pexels

Há quem tenha sido treinado, desde cedo, para ser admirável. São os que aprendem a antecipar demandas antes que elas cheguem, a sustentar circunstâncias, a ocupar lugares com precisão e maturidade tão impecáveis que ninguém cogita oferecer-lhes gentileza, pelo contrário: apenas mais responsabilidade. Apesar de aparentemente admirável, há, na origem desse comportamento, uma crença perfeitamente normalizada: se eu for valiosa, serei mantida – sendo o contrário verdadeiro.

E, de fato, será. Mas não como presença pela presença, mas como recurso, quase logístico e produtivo. Tornam-se a pessoa chamada quando é preciso resolver, não quando é preciso apenas estar… Vínculos assim não se organizam em torno do afeto, mas da função, apesar de travestidos de afetivos. No fim, são relações de escambo: eu ofereço performance, você me oferece permanência. Assim… Nu e cru e doídamente solitário.

Com o tempo, essa lógica produz uma forma de hipervigilância afetiva: um estado de atenção contínua para garantir que o lugar conquistado não se perca por falta de atenção às expectativas. Esta é a regra velada de tantos vínculos: a ordem inverte-se – o afeto, tantas vezes, chega como recompensa e não como ponto de partida. E quem enxerga isso cedo demais, aprende a oferecer antes mesmo de sentir, para não correr o risco de desaparecer no mundo. Existir, nesses espaços, nunca é gratuito. Sempre vem com uma especie de negociação.

Mas ainda há um desejo quase arcaico, simples ao ponto de parecer ingênuo: poder existir em segurança em um lugar em que a presença não precise vir justificada por competência, nem pelo desempenho intelectual, de personalidade ou seja lá do que for, de ser um pouco mais ou menos do que se espera. E que, sobretudo, o erro banal não determine a continuidade ou o fim de relações que se dizem sólidas. O que se espera é tão pouco e tão muito: um lugar em que o gesto afetivo não dependa de utilidade, em que seja possível não ser interessante, não ser brilhante, não ser solução. Em que se tenha licença poética para errar por questões banais, ajustar, existir e, ainda assim, não desaparecer do radar da vida do outro. Já pensou?

Há uma solidão muito específica em ser sempre a pessoa capaz. Uma solidão educada, diplomática quase em excesso, de frases que funcionam como lembretes de padrão e de vínculos que sobrevivem apenas enquanto houver entrega, mas não qualquer entrega: a entrega do jeito e na forma que corresponda ao imaginário do outro, sem que nada ele se molde. É uma solidão tão fina que, justamente por ser tão fina e sutil, é devastadora.

O mais indizível que nem sei se é dor, porque suspeito ser algo além, é que há vínculos que reconhecem o valor, mas não reconhecem a pessoa. Isso acontece quando o vínculo te deseja lúcida, mas não vulnerável; presente, mas não sentida; impecável, mas não inteira. E então, mesmo em laços que parecem muito próximos, chega-se uma ausência, mais uma vez, quase imperceptível e suave: a que vem da sensação de que o que reluz que vem de algum resultado é sempre muito bem-vindo, mas a humanidade, nem sempre. É uma experiência estranha, embora comum: estar incluída pelos méritos e, ainda assim, sentir-se estrangeira na zona do que é mais humano.

Talvez por isso o cansaço dessas pessoas não seja físico, seja metafísico. Um cansaço de ser amado pelo efeito e não pela presença.

Há uma moral, quase sagrada, em amar alguém também na sua não-utilidade. Admirar a performance é fácil. Difícil é permanecer quando o outro não oferece mais nada além de sua falha e da sua humanidade imperfeita. É aí que a natureza do vínculo se mostra, de um jeito que não permite disfarces: genuíno ou utilitário? A verdade convocada chega como um vendaval que ninguém controla.

Com todas as inseguranças, uma hora todos nós sabemos que podemos ser excelentes. O que não sabemos é se, sem excelência, ainda somos bem-vindos. O direito de existir sem ser útil é, em primeira e em última instância, o direito ao afeto sem ser circunstancial.

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