Opinião
Não é sobre Zé Felipe e Virgínia – é sobre nós, que desistimos de sustentar o afeto
Tudo que escrevo aqui parte do pressuposto de relações saudáveis – sejam amorosas, familiares, de trabalho ou de amizade – em que exista afeto, vínculo ou alguma troca sincera. Quando menciono ceder, não falo de se anular. Quando falo em sustentar, não é sobre se diminuir. É sobre escolher permanecer e não fugir quando ainda há sentido, quando ainda há afeto e possibilidade real e lícita de construção.
Definitivamente, este texto não é sobre Virgínia e Zé Felipe. É sobre uma geração que não esqueceu, mas decidiu não sustentar vínculos e, com isso, se afastou da própria condição humana. O término deles é apenas mais um outdoor midiático do que vem ocorrendo com frequência dentro de tantas relações que vivemos. É ou, não é?
Vivemos a era dos vínculos frágeis e altamente voláteis, em que o afeto real virou quase raridade e partir diante de alguma dificuldade natural parece mais fácil do que permanecer para lapidar. Sustentar se tornou a exceção máxima. Se ajustar criativamente ao tédio, ao silêncio, à imperfeição e aos defeitos: quase uma sentença de impossibilidade. Tolerar a ausência de novidade, o banal e o outro, quando este outro nos pede atenção ou presença, virou uma exigência muito onerosa.
Percebo que o afeto escorre com uma facilidade assustadora pelas brechas das agendas, rotinas, do cansaço, das demandas, da incompletude do outro, das necessidades e da inabilidade de lidar com o que não é imediatamente contornável. Posso dizer que sinto que não foi o amor que mudou ou se tornou mais exigente — foi a estrutura conceitual que está difundida hoje que já não comporta a complexidade do que significa um real encontro verdadeiro e sem filtro entre pessoas.
Os dias nos levam a reafirmar que o afeto não é adquirido, deglutido e digerido como fast food. É um processo. Desconheço algum que seja instantâneo, linear e sem desafios. O afeto é esforço e, sobretudo, é enxergar e querer estar junto ao ver o outro sem a fantasia do ideal, e aceitar a si mesmo sem os louros constantes e palcos oferecidos no início da relação.
Está na moda substituir o amor quando o afeto deixa de performar como desejado. Está desafiador? Troca. O sexo esfriou? Troca. A rotina pesa? Troca. O tesão balançou? Troca. As pessoas são descartadas como quem descarta um papel de picolé no lixo — e não há sequer vontade de recorrer à segunda instância, ou seja, não há uma mínima disponibilidade para resgatar aquilo que, em tese, importa.
O amor, que deveria ser persistência, se torna ocasião. Uma espécie de sorte que ocorre por tempo limitado. No fundo, o utilitarismo venceu até aqui: dar fim e fingir que o vínculo não existiu virou mais negócio do que batalhar pelo prosseguimento do vínculo real – que é, por natureza, imperfeito.
E o mais cruel é que não se restringe aos nossos amores românticos. Inundam as amizades, relações familiares, o trabalho ou qualquer lugar em que possa haver algum afeto em potencial. A lógica é a mesma: se dá trabalho, se não é sempre leve tal qual uma pena, se demanda energia, então, é melhor desligar-se da pessoa, como tiramos um objeto da tomada. A verdade é que o vínculo vira utilidade e o afeto, conveniência.
Tanto querer tão somente ser servido quanto a alimentação de um idealismo quase forjado, para não dizer oportunista, tem tornado as pessoas especialistas em abortar processos antes que iniciem — imagine aprofundar. O silêncio virou recurso. O sumiço, resposta. O bloqueio, solução. E a pessoa, aquele corpo vivo, com história, alegrias, dores e afeto, vira um alvo tão sem valor e volátil que pode desaparecer da vida de um certo alguém tão rápido quanto apagamos um app quando a memória — literalmente — está cheia, que é quase sempre.
No entanto, pessoas não são apps nem edições de story. Para a surpresa geral, relações humanas não são instantes bloqueáveis. Não se deleta o que nos toca com tanta rapidez. E, no entanto, temos tentado reduzir o ser humano ao que é circunstancial, frívolo e descartável — inclusive com uma grande violência simbólica travestida de maturidade. Agora, é chique não perder tempo, e desistir dos vínculos honestos é dito com orgulho.
Afinal, vivemos uma era em que o “eu” se tornou maior do que qualquer comunhão. O autocuidado virou máscara para o egoísmo. Troca-se vínculo real por uma suposta autonomia; profundidade por controle e, talvez o mais sintomático: alteridade por espelho. Ou seja, os vínculos que não confirmem tudo o que eu quero ouvir se tornam ataque. O outro não é mais outro: é reflexo. Ou é assim, ou não serve. Vai para a lista dos apagados — não do celular, mas da vida.
Acontece que o amor não existe no “eu”. Amor só existe no “nós”. O que muitos chamam de amor é, na verdade, um Narciso falando sozinho. Uma identificação que só valoriza o que reflete o próprio ego. Narciso não amava — ele apenas rejeitava tudo que não lhe devolvia a si mesmo. Isso não é amor. Isso é incapacidade absoluta de criar vínculos honestos, reais e complexos.
Verdade seja dita: acha-se feio tudo aquilo que não é o espelho que a gente escolhe ver. Porque o que assusta numa relação verdadeira não é exatamente a convivência, nem o possível desgaste da rotina — é o espelho que ela nos oferece. Vínculos profundos desnudam, tornam vulneráveis, expõem partes que nem sempre gostaríamos de ver, e nos colocam diante do outro sem armaduras, com a esperança silenciosa de que isso não será usado contra nós. Não é todo mundo que tem essa coragem — e há quem tenha razões legítimas para recuar. Mas é inegável: a fuga, quando acontece, é quase sempre imediata, porque, no fundo, não fugimos do outro, fugimos da imagem nua e crua que ele reflete de nós mesmos.
Não me acho corajosa para quase nada nesta vida, de verdade. Mas, se tem algo que sou, é isso: tento, com frequência, acessar o que vejo e o que sublimo sobre vínculos e relações… o que distorço, o que afasto de mim, o que não sustento. Nem sempre consigo ver, mas, nesse ponto, não me falta coragem. E sigo. É cansativo. É interessante. É confuso. É transformador. Assim como é viver.
E talvez essa seja a verdade mais simples de todas: prazer eterno não existe. Relacionamento — amoroso ou não — sem tédio, sem silêncio, sem ruídos, sem dificuldade, também não existe. O hedonismo é inviável, impossível e cruel, porque a vida é feita, também e sobretudo, de infinitas dores que aparecem com formas remodeladas.
Então, quando vivermos amores, vínculos ou relações dessa natureza, lembremos: tem gente que oferece tão pouco de si que, em um primeiro momento, é tentador reagir com raiva ou frustração. Mas, com um olhar mais atento, percebe-se de forma até incontroversa que não se trata de maldade, mas de uma limitação emocional que é cômoda manter. São pessoas que evitam olhar para dentro porque temem o que podem encontrar. E se nem ao menos ousaram habitar a própria interioridade, como poderiam, então, compartilhar esse território com outro? Não há partilha possível quando o sujeito sequer se reconhece. E é justamente essa ausência de acesso a si que impede a permanência, a entrega e o vínculo real — e sinto te informar, mas esse problema a resolver não é seu! E você não irá salvar quem não quer uma ajudinha para salvação.
Agora, verdade seja dita: quando tudo passa, o que resta não é o unfollow, nem o silêncio elegante, nem a resposta protocolar. Não é o comunicado público, tampouco a presença de uma nova pessoa. O que sobra é um hiato brutal entre o diálogo e o silêncio covarde disfarçado de maturidade. Entre a última troca real e o vazio do não-retorno. O que permanece é uma espécie de descompasso existencial: a consciência incômoda de ter sido covarde de ter fugido justamente daquilo que era o único produto de luxo que podemos ter: uma relação genuína – cada vez mais rara.
Acredito que, no fundo, no fundo, no fundo, amar é contrariar as circunstâncias ao redor, que majoritariamente irão nos desafiar, e permanecer quando seria mais fácil ir embora. É persistir, com afeto, na construção de um mundo em que as pessoas não são coisificadas, retiradas da tomada por serem imperfeitas ou descartadas no lixo como qualquer coisa – literalmente.
Porque, no fim de tudo, o que chamam de liberdade emocional não passa, muitas vezes, de um descompromisso mascarado, uma falta de disponibilidade. Vejo como sendo um narcisismo relacional posto de forma educada, elegante, silenciosa, sem barulho – e tão somente descartada. Uma fuga covarde vestida de autoconhecimento.
E a grande ironia é essa: quem assim age por achar que está se protegendo, está se esvaziando. De tanto evitar o trabalho que qualquer vínculo causa, também sai de cena a possibilidade de experimentar algo realmente honesto, profundo e real.
No fim, o que sobra é o que não se sustentou, não por falta de amor, mas por recusa de esforço. E por mais que se tente maquiar de maturidade, a natureza relacional do humano continua lá. Talvez por isso, mesmo entre silêncios, bloqueios e fugas sutis, siga ecoando a pergunta que nenhuma nota oficial responde: ainda sabe-se amar quando o amor e vínculo exigem trabalho, vulnerabilidade, reconstrução e imperfeição?
