Com a palavra, Luiza
Mesmo com, e apesar de, o que podemos ser além do que já somos?

A vida é feita de narrativas, mas raramente as narrativas coincidem com aquilo que verdadeiramente somos. Porque o ser não tem nome, não ocupa lugar fixo, não assume forma definitiva. É volátil, flexível e feito de possibilidades ao invés de certezas.
Por não termos nome, podemos ser tudo. Por não termos lugar, podemos habitar qualquer espaço. Por não termos forma, podemos nos reinventar sem fim. A liberdade nasce dessa fluidez e pede apenas um guia interno, que não tem rosto nem nome, mas sabe indicar o caminho.
O risco é confundir o que é o nosso guia com o sistema de crenças de desvalor que acumulamos e formamos sobre nós. De tanta confusão, às vezes até se mimetizam, de maneira que, para nós, se formam em um só.
Esse olhar, tantas vezes violento sob o prisma da autenticidade nos chega cedo demais. Antes mesmo de sabermos o que podemos ser, já nos vemos pelo reflexo distorcido que ele projeta. Muitas vezes, crescemos acreditando que somos apenas o que ouvimos – os rótulos, as caricaturas, as versões reduzidas de nós mesmos. E, pouco a pouco, deixamos de enxergar nossas próprias potencialidades. Não porque elas não existam, mas porque aprendemos a desviar muito bem o olhar delas.
E no território da criação e da autenticidade, talvez não haja violência maior do que a de se reduzir ao que é mensurável e previsível. Por outro lado, por que insistimos em aceitar definições que nos encolhem? Seria mais confortável, no fim?
Se tudo é perspectiva, por que não nos autorizamos a ver que o que parece inadequado em um contexto pode ser, em outro, justamente a centelha necessária? O brilho que faltava. A vontade que pulsa e pede passagem.
Isso começa cedo. Uma criança que fala demais, que inventa, que interrompe, que experimenta, logo recebe o selo de rebelde ou inconveniente. Mas e se o adulto (supostamente maduro) soubesse enxergar além da superfície e canalizar essa energia para ação, autenticidade e potência criadora? Quantas possibilidades não se perderiam nesse caminho de podas?
Se por um lado sempre fui disruptiva por natureza, mas sem muito pensar, há poucos dias tive a percepção mais evidente possível de que o O maior perigo da vida não é experimentar. É não se permitir experienciar. É se amputar daquilo que poderia ser, antes mesmo de saber. O verdadeiro risco é acreditar que só existe uma forma de olhar, e que esse olhar basta.
O olhar do outro é inevitável, mas até que ponto é medida justa e até que ponto é castração sutil? Duro é admitir que nossas crenças de desvalor quase sempre nascem desse olhar e, ao aceitá-lo como verdade, apagamos a chance de sermos apenas o que somos e do que poderíamos ser.
Aqui não falo só de gestos complexos. Falo, sobretudo, do que é ordinário, como aprender a tocar um instrumento ou fazer aquilo que faz sentido para nós, mas tememos ser só para nós, por isso, calamos.
O mundo não precisa de mais corpos domesticados, precisa de quem aceite o risco. De quem suporte o desconforto de sustentar o inusitado, ainda que doa ser apontado, ainda que doa ser rejeitado. A intensidade e a originalidade não florescem no consenso, mas no abismo entre o que se espera e o que se ousa. E, no entanto, seguimos encolhendo. O olhar do outro pesa como sentença, enquanto a vastidão do que poderíamos ser se cala, intacta, por covardia.
Não é simples bancar o que nem nós sabemos se existe ou se faz sentido. Mas a vida, de tão simples, é complexa. Previsível a dificuldade, não?
Quantas versões suas você já enterrou para não destoar? Quantos gestos matou antes mesmo de nascerem, só para não ser visto como impróprio? E se o que você teme mostrar – justamente isso, o que acha inadequado, exagerado, fora do tom – fosse a fagulha capaz de iluminar o que falta ao mundo e à nós?
O verdadeiro fracasso não é ser ousado demais. É viver inteiro dobrado, acorrentado ao conforto das molduras alheias. Porque, no fim, a pergunta não é sobre eles, é sobre nós.
Será mesmo que o perigo está nos olhos que nos julgam, ou na nossa rendição em acreditar que eles sabem mais de nós do que nós mesmos? Ou talvez, ainda mais cruel, no fato de supormos que conseguem nos governar por dentro melhor do que nós próprios jamais ousamos?
A verdade é que ninguém nos governa tanto quanto o medo de encarar o que já acontece por dentro.
