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Com a palavra, Luiza

A vastidão do ser inacabado

Publicado

Imagem: Pexels

Para fora do já constituído, o que podemos ser além do que já somos? A vida é feita de narrativas que, autônomas, divergentes ou confluentes, jamais coincidem inteiramente com aquilo que, em essência, somos. O ser é presente e futuro; não tem nome, não ocupa lugar fixo e não assume forma definitiva. É volátil, flexível e feito de possibilidades em um mundo que insiste em certezas.

O ser é em aberto. Por não ter nome, podemos ser tudo. Por não ter lugar, podemos habitar qualquer espaço. Por não ter forma, podemos nos reinventar. A liberdade nasce dessa fluidez e, em abstrato, é irrestrita. No entanto, essa mesma liberdade encontra limite na vida concreta, que exige escolhas e direção. A vida pede que tomemos as rédeas e ouçamos a voz daquela força interna que nos habita, a qual também não tem nome nem rosto, mas sabe indicar o caminho.

O risco é confundir essa força com o sistema de crenças de desvalor que, em alguma medida, todos acumulamos e retroalimentamos sobre nós. E é justamente aí que o olhar do outro começa a pesar, moldando nossas crenças antes mesmo de sabermos quem somos.

Esse olhar, tantas vezes violento, nos alcança cedo demais. Antes mesmo de sabermos o que poderíamos ser, já nos vemos pelo reflexo distorcido que ele projeta. Em alguma medida, crescemos acreditando que somos os rótulos, as falhas, as caricaturas e as insuficiências.

Pouco a pouco, deixamos de enxergar nossas potencialidades e passamos a duvidar se existem ou se já existiram. No território da criação e da autenticidade, talvez não haja violência maior do que a de nos perder de vista e nos reduzirmos ao que é mensurável e previsível. Afinal, o que poderia nos afastar mais da beleza da vastidão de sermos inacabados?

A mediocridade é tão segura, tão longe dos riscos, que a tentação de permanecer à margem de nós mesmos nos seduz. E essa mediocridade nasce justamente da dificuldade de perceber que toda definição é apenas uma perspectiva.

Se tudo é perspectiva, por que não ver que o que é julgado inadequado em um contexto pode ser, em outro, a centelha necessária? A voz tão esperada? A coragem que faltava? Ou a ousadia de que se precisava?

Não por acaso, é na infância que o olhar do outro nos captura com mais força. Uma criança que fala demais, que cria, que interrompe, que questiona, logo recebe o selo de rebelde ou de inconveniente. É nesse processo precoce de poda que nasce, mais tarde, a dificuldade de experienciar plenamente. Mas, se o adulto (o supostamente maduro da relação) soubesse enxergar além da superfície e guiasse essa energia em direção à ação criadora, quantas possibilidades não seriam preservadas em vez de podadas?

O verdadeiro risco é acreditar que só existe uma forma de olhar para si e que esse olhar basta.

É inegável que muitas dessas percepções vêm das considerações que nos foram ditas e nós incorporamos com tal força que desviar delas se torna desafiador. O olhar do outro é inevitável, mas até que ponto é medida justa e até que ponto é uma castração sutil? Ao aceitarmos como verdade essas projeções, apagamos a chance de sermos não apenas o que somos, mas também o que ainda poderíamos descobrir em nós.

Não falo apenas de gestos complexos. Falo do que é ordinário, do dia a dia. O mundo não precisa de mais corpos domesticados, mas de quem aceite o risco. De quem suporte o desconforto de sustentar o inusitado ou o que se é, ainda que possa ser colocado em xeque ou preterido.

A verdade é que o mundo pertence aos disruptivos e aos corajosos. A autenticidade e a mudança não florescem no consenso, mas no abismo entre o que se espera e o que se ousa! Inclusive, é nesse abismo que habitam as escolhas difíceis – e é dele que nasce o medo que nos retrai.

Agora, convenhamos: não ser covarde é difícil. Difícil porque ser disruptivo é pregado como como ameaça. Difícil porque a luta não é única: é dupla, é múltipla. E essa luta se materializa no dia a dia, quando enterramos versões de nós mesmos só para caber em espaços que não nos servem.

Quantas versões suas você já enterrou só para não destoar? Quantos gestos matou antes mesmo de nascerem, só para não ser visto como impróprio? E se o que você teme mostrar a justamente isso, o que julga inadequado, exagerado, fora do tom – fosse a faísca capaz de iluminar o que falta ao mundo e a si?

O verdadeiro desvio não é ousar. É viver acorrentado ao conforto das vontades alheias e das que nós mesmos inventamos. Porque, no fim, a pergunta não é sobre eles, mas sobre nós. Será mesmo que o perigo está nos olhos que nos julgam ou na nossa rendição em acreditar que eles sabem mais de nós do que nós mesmos? Ou talvez, ainda mais cruel, no fato de supormos que conseguem nos governar por dentro melhor do que nós próprios ousamos admitir?

A verdade é que nada nos governa tanto quanto o medo de encarar o que já somos ou, ao menos, de procurar quem somos. Somos sempre mais. Somos a beleza das possibilidades inacabadas e vastas, não nos assustemos.

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