Cultura
Eva Potiguar e a invisibilidade das escritoras indígenas
Os problemas na lenta inserção de mulheres indígenas na literatura brasileira
Por Luanna Karen e Marcella Vitória
Evanir de Oliveira Pinheiro, artisticamente Eva Potiguar, é graduada em Artes Plásticas, possui Mestrado e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Além disso, é escritora, ativista, produtora e ilustradora indígena. Concorreu em prêmios nacionais e internacionais no ramo da educação. Com livros publicados, suas principais obras são: “Do casulo à borboleta” e “Gatos diversos”.
Você sempre se viu como uma mulher indígena?
Não. Foi um processo de reconstrução identitária difícil e ainda em evolução, visto que minhas famílias maternas e paternas omitiram muitos fatos históricos e sociais que envolviam esse contexto. Depois de muitos anos nesse apagamento, fui me dando conta de que nossas famílias tinham vínculos fortes com os povos potiguaras do RN e bem mais tarde, do Norte do Pará. Foi uma longa estrada conversando com tias e primos, investigando documentos da família e levantando mais dados. Medo, vergonha, racismo, receios de discriminação, entre outros pontos, foram e ainda são os mais responsáveis por esse processo de construção de minha identidade ter sido lento e complexo.
Muitos parentes se negavam a falar, outros me criticavam por intervir nesses dados da memória familiar e mesmo me sentindo solitária, segui o meu fluxo tanto por necessidade pessoal, quanto por necessidade coletiva. Ou seja, quanto mais eu estudava sobre corporeidade e formação humana, mais eu sentia impulso por minha ancestralidade, ao mesmo tempo, sentia uma responsabilidade desse resgate familiar e coletivo. Hoje meus familiares já assumem sua identidade indígena de forma interna, se manifestam admitindo fatos contando experiências de meus avós e bisavós. Continuo nesse processo, com mais apoio familiar e com menos intolerância. Alguns até manifestam gratidão por isso.
Como você acha que a mídia representa essas mulheres?
Praticamente, a mulher indígena é invisível em diversos segmentos. Quando a imagem da mulher indígena surge, em geral, vem impregnada de estereótipos que a limitam a uma imagem de selvagem ou ingênua nas aldeias e florestas. Raramente a mulher indígena é vista como uma escritora, cientista, educadora, política, entre outros ofícios sociais de importância ou destaque social.
Alguns meios de comunicação social vêm mudando essa postura segregadora e abrindo oportunidades de divulgar as lutas dos povos originários e suas demandas em prol do cumprimento dos direitos humanos e constitucionais que reivindicam. As mulheres estão sempre nessa linha de frente, sob diferentes funções: lideranças indígenas, caciques, líderes políticas, escritoras, pesquisadoras, professoras, entre outras atividades, nas aldeias e nas regiões urbanas.
Quais são as maiores dificuldades de ser uma mulher indígena e escritora?
É uma luta diária e incansável, por resistência e existência. O estigma de que o indígena não tem produção cultural e escrita de relevância social e cultural, ainda é mais acentuado na mulher. Se amplificam com machismo e com o racismo, nas perseguições misóginas e eugenistas, que discriminam o saber ser e saber fazer das mulheres indígenas. São muitas imposições e comparações que ferem os direitos humanos dos povos originários, desde a sua singularidade cultural, espiritual e cosmológica de sentir e perceber o meio histórico, social e ambiental.
Como você observa a inserção de mulheres escritoras indígenas na literatura? A que você atribui a invisibilidade de escritoras indígenas?
A inserção da mulher já é uma resistência cada vez maior nos movimentos feministas desde o início do século XIX. Porém, as dificuldades de publicação e de visibilidade da mulher indígena e escritora, são ainda muito implicadas em raízes coloniais e fascistas, que ofuscam a visibilidade da escritora indígena. Basta perguntarmos: quantas mulheres lemos na nossa infância escolar e quantas indígenas entre elas? Será que não havia escritoras nas aldeias e nas zonas urbanas? Se para as mulheres em geral, o espaço da escrita era difícil, para as mulheres negras e indígenas era e ainda é muito maior, por questões de racismo e de depreciamento das culturas tradicionais dos povos que elas representam.
Como surgiu o desejo de se tornar uma escritora? Alguma vez já pensou em desistir de escrever?
Sou contadora de histórias desde menina, mas o desejo de escrever começou aos 10 anos de idade com histórias em quadrinhos. Eu brincava e me divertia, desenhava, pintava e escrevia minhas histórias e meus colegas liam seguindo uma lista de leitores. Eu criava também contos com releituras de contos clássicos e de lendas que ouvia de meus avós. Foi assim que nasceu uma personagem indígena chamada Lizya, uma mistura de minhas simbologias que hoje eu percebo que eu expressava raízes ancestrais que não tinha consciência das mesmas. Quando entrei na universidade, parei de fazer essas produções, para investir no campo da pesquisa. Após o doutorado em 2011, que me direcionei para voltar a escrever por prazer e não apenas por função científica e acadêmica. Crônicas e poemas foram tomando espaços de minhas produções literárias.
Pensei em desistir quando vi as dificuldades financeiras e a indiferença aos temas que eu sentia necessidades de publicar e não encontrava editoras interessadas. Minha filha que me incentivou a criar minha própria editora e hoje já tenho três livros produzidos e ilustrados por mim, de forma independente. Hoje as dificuldades me acendem ainda mais a resistir e a lutar por esse lugar de voz e de visibilidade.
Qual verso da literatura indígena que te inspira?
“Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é flor no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade. Bonito é dizer sim e avançar. Bonito é renascer todos os dias”. Eliane Potiguara.
Produzido com intuito acadêmico e adaptado para a publicação. Pauta crucial da disciplina de Mídia Contra-Hegemônica, na UFRN.