Sociedade
Especial Mulheres: A felicidade de poder ser o que se é
O Elo Jornal continua a série de reportagens com mulheres que atuam em diversas áreas no Rio Grande do Norte. Mulheres que se destacam nas mais variadas profissões e mostram uma trajetória de conquistas especiais, apesar das lutas e barreiras impostas pela sociedade.
Na reportagem desta segunda, você vai conhecer um pouco mais sobre Emilly Mel Fernandes, primeira psicóloga transexual formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em 40 anos.
“Eu acho que a maior dificuldade de ser aceita como mulher trans, é ser respeitada, porque a gente ainda passa por muita transfobia. As pessoas querem tirar a gente do banheiro, soltam piadas, não reconhecem o nosso trabalho. Eu sou uma psicóloga com várias especializações e tenho mestrado. (…) Meu sonho era poder ter um emprego formal, poder trabalhar, ser contratada e não consigo, mesmo com um bom currículo.”
Emilly Mel
Nascida em São Bernardo do Campo, mas criada em Santo André, ambas cidades no estado de São Paulo, a psicóloga Emily Mel Fernandes aproveitou bem todas as brincadeiras e momentos lúdicos que toda criança deveria viver. A maioria das lembranças sobre o carinho dos pais, as brincadeiras na rua e amigos, remete a bons momentos.
“Eu lembro de brincar na rua, andar de bicicleta, brincar de queimada, de videogame e que todo mundo se conhecia. Era muito bom! Não foi uma infância ruim. Eu tive tudo que eu precisava como criança. Meus pais me davam tudo. Então, cresci como qualquer criança porque eu nunca fui um garoto, mas brincava com tudo”, relembra.
A única lembrança triste é a de se sentir diferente dos outros meninos e não poder se expressar. Emily relata que “o que era difícil era não poder viver minha expressão de gênero, não poder ser igual às minhas irmãs mais velhas. Eu queria muito ser igual a elas e não podia. Então, acho que a recordação mais forte e difícil é essa, da restrição, que a gente não pudesse mudar o gênero como hoje. Naquela época (…) acho que uns vinte e cinco anos atrás, a transexualidade não era tão exposta.
A hoje psicóloga só foi se descobrir realmente como mulher trans, no terceiro ano da faculdade de psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
“Depois de mais de 30 anos no sudeste, meus pais decidiram voltar para Natal, quando minhas irmãs e eu ainda éramos adolescentes. Terminei o ensino médio aqui e em seguida entrei na UFRN. Foi na faculdade mesmo que eu tive contato com a palavra transexualidade, durante uma aula. Eu fiquei encantada e ao mesmo tempo assustada. Mas, eu já sabia que era trans de alguma forma, só não sabia a palavra. Então eu disse “ok”, sou trans, vamos à luta!”, relembra.
Os primeiros a saber da decisão foram os familiares. Emily lembra que “a reação não foi muito boa. Minha família não aceitou, minha mãe não aceitou. Foi bem difícil, nós tivemos muitos conflitos. Eu cheguei a ser agredida e tive que sair de casa. Já as minhas irmãs me defenderam muito, sempre estiveram ao meu lado. Minha irmã Lílian foi meu anjo da guarda, me levou para morar com ela e não deixava que nada de ruim acontecesse. Enfim, todo aquele drama que a gente passa quando a gente sai do armário”.
Mas, os momentos ruins passaram. Todos se perdoaram e decidiram deixar o que passou para trás.
“Hoje minha mãe é minha melhor amiga. Nós nos amamos e brincamos muito quando estamos juntas. Hoje ela até me cobra um nível de feminilidade e vaidade muito alto e parece que nada daquilo aconteceu. Ao mesmo tempo, eu sou grata à minha mãe e à minha família. Eu amo todos do jeito que eles são, uma família muito agitada e muito divertida. Que briga às vezes, mas que quando está junta é muito divertida. E assim a gente segue em frente, sem deixar o passado nos parar”, destaca.
Vencida a primeira batalha, a então estudante de psicologia partiu em busca dos direitos como cidadã e decidiu lutar para modificar o gênero, também nos documentos. Não foi fácil, mas em 2015, Emily Mel conseguiu mudar o nome social. Ela é a primeira mulher trans do Rio Grande do Norte a conseguir mudar de nome, antes da realização da cirurgia de redesignação sexual. Também é a primeira psicóloga transexual formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
“Ah, trocar meu gênero foi uma alegria só. Poder usar meus batonzinhos vermelhos, os vestidinhos, os saltinhos. Poder usar meu nome Emily Mel e ser tratada como uma garota, ter o meu nome reconhecido! É muita alegria poder ser a primeira profissional da psicologia que passou, literalmente, como trans pela psicologia. Outras se tornaram trans depois que terminaram o curso. Eu não. Passei toda a graduação e o mestrado como a primeira profissional trans e isso está documentado. Então, acho que a alegria de ser o que se é, independente das circunstâncias, de ter a liberdade na veia como substrato que rege a vida é a maior coisa, é maior alegria”, comemora.
Apesar de toda a leveza que trouxe a conquista de ser reconhecida, de fato, como mulher, o preconceito continua presente no dia a dia de Emily. Para ela, “a maior dificuldade de ser aceita como mulher trans, é ser respeitada, porque a gente ainda enfrenta a transfobia estrutural. As pessoas querem tirar a gente do banheiro, soltam piadas, não reconhecem o nosso trabalho. Eu sou uma psicóloga com várias especializações e tenho mestrado. Mesmo assim, ainda é muito difícil a inserção no mercado de trabalho. Meu sonho era poder ter um emprego formal, poder trabalhar, ser contratada e não consigo, mesmo com um bom currículo. Mas, apesar de tudo estou feliz com o que eu tenho, tentando sobreviver da minha forma. Apesar das dificuldades tenho amigas e irmãs maravilhosas, pessoas que me amam e me apoiam. Então, sigo em frente”.
Dia Internacional da Mulher
Para Emily Mel Fernandes, as mulheres devem sim comemorar a data, o mês, “porque ser mulher é um grande desafio diante de uma sociedade extremamente machista e patriarcal, onde o direito das mulheres, nas várias intersecções de raça, classe, identidade de gênero, ainda não são respeitados. Nós temos a questão do aborto, a questão da igualdade de salários, a questão da violência e proteção desse corpo da mulher. Então, eu acho que a data tem que ser comemorada porque a gente sabe da luta que foi por essa conquista, da revolução que é, e para que a gente não esqueça do passado. A sociedade tende a esquecer os atos mais cruéis, mas a gente precisa lembrar para não fazer errado de novo”, justificou.
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