Séries e Filmes
Crítica: A Vida Invisível
Karim Aïnouz mostra sensibilidade no filme ganhador da mostra “Un Certain Regard”, do Festival de Cannes
No início de “A Vida Invisível”, vemos Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) juntas, aproveitando a paisagem do Rio de Janeiro. Depois de apreciarem o cartão postal local, as duas protagonistas se separam, uma não consegue mais vê a outra, mas elas se ouvem.
Essa cena inicial mostra como será a jornada de Guida e Eurídice no decorrer da história, a separação não será mais pelo acaso, e sim pela a estrutura social em que vivemos: o patriarcalismo tóxico. A história se passa no Rio de Janeiro da década de 50 e acompanha a vida das irmãs Guida e Eurídice que são separadas abruptamente pelo pai das meninas – interpretado por Antônio Manoel – pois este não aceita o fato de Guida ter fugido de casa e voltar para a cidade sendo mãe solteira.
Para contar todo o decorrer dessa intensa história de amor e separação, o roteiro escrito por Karim Ainouz, Murilo Hauser e Inés Bortagaray, adaptado do livro de Martha Batalha, precisava ser fluído e multidimensional com os astros da história. Nesse quesito, eles acertam, o desenvolvimento das duas protagonistas são bem exploradas desde a cena inicial citada no primeiro parágrafo, passando pelos diálogos – que apresentam suas personalidades -, ao terceiro ato. Percebemos o quanto que as mulheres foram realmente afetadas pela barreira do machismo.
Ter o roteiro bem desenvolvido não seria suficiente, a direção precisava estar segura e naturalista. O experiente diretor Karim Aïnouz – conhecido pelos clássicos modernos: Madame Satã (2002) e Céu de Suely (2006), só para citar alguns – tem a sensibilidade necessária para mostrar os podres da formação da sociedade brasileira. A maneira como filma a primeira noite de núpcias entre Eurídice e Antenor (Gregório Duvivier) é contemplativa, dando a finalidade de desprezo e patologia pelo abuso, tão comum, que sempre aconteceu. Outro exemplo é na escolha por close ups dos rostos das atrizes como se o público e o ambiente machista estivesse sempre julgando seus atos. Ou seja, ele apresenta a ideia do filme através das escolhas desses planos mais intimistas.
Outro recursos narrativos bem colocados são a fotografia e a montagem. Na parte visual, a francesa Hélène Louvárt reproduz belamente, com cores super saturada, em especial o amarelo, um Rio de Janeiro melancólico, de muito calor, passando a ideia de época que o longa precisava. Já na parte rítmica, Heike Parplies dosa bem a obra entre os atos de Guida e Eurídice, como se ambas ainda estivessem ligadas de alguma forma, apesar da separação causada pelo pai.
Para passar essa compreensão para o público, o elenco tinha que está afiado e naturalista, Julia Stockler (Guida) representa uma mulher à frente do seu tempo, corajosa, ousada e aguerrida, que rouba as cenas em que aparece, exprimindo uma personalidade destemida em pleno Brasil da década de 50. Exemplo disso é na cena em que fala como o seu pai vive no século passado, demonstrando a lucidez ideal para ser diferente de Eurídice. Já Carol Duarte (Eurídice) desenvolveu muito bem uma persona mais intimista, introvertida perante o sufoco que os homens da sua família fazem com ela, mas que guarda todo esse sentimento ruim para soltá-lo no terceiro ato. Gregório Duvivier surpreende ao fazer um papel diferente das esquetes cômicas em que atua no “Porta dos Fundos”, o ator se equilibra entre o desprezível nas cenas mais desagradáveis e tensas; e no “lúcido” nos diálogos com Eurídice. E a cereja desse bolo muito recheado e cheio de camadas acontece na excelente participação final de Fernanda Montenegro, na qual a atriz consegue emocionar com apenas palavras.
A Vida Invisível conseguiu mostrar o quanto que a masculinidade tóxica histórica da sociedade brasileira foi capaz de causar separações irreparáveis nas vidas de muitas Eurídices e Guidas, que só serviam para a reprodução, além de destruir sonhos e a sanidade dessas pessoas, causando uma invisibilidade que a estrutura patriarcal faz até hoje.
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