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Opinião

A contradição que sustenta a vida

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A pulsão por uma vida valente e bonita nasce daquilo que é intangível e quase nunca inteligível: o sentimento. Mas não qualquer um. É o bem. O amor. A esperança. A generosidade. E tudo mais que nutre o nosso espírito, ainda quando adormecidos ou em potencial.

Humanos, demasiadamente humanos, todos sabemos – embora muitos neguem – da força transformadora e silenciosa que existe no amor e em tudo que nos eleva. Paradoxal como a vida, o que nos inquieta é que negar não faz desaparecer a potência daquilo que julgamos esconder. Ao contrário: descortina, indica e escancara. O que deveria permanecer oculto se transforma em sintoma e se torna uma espécie de protagonista silencioso — que nos corrói sem sequer nos dar a chance do contraditório.

A negação nada mais é do que tentar fugir daquilo que vive em simbiose conosco. Mas será possível escapar do que tem morada em nós, se somos o destino inicial e o de retorno? O princípio e o fim?

Não há sublimação possível. De uma forma ou de outra, todos somos confrontados com o que acreditamos estar debaixo do tapete. Uma hora ou outra, todos nós seremos chamados para o banquete das consequências das nossas escolhas. E talvez este seja o traço mais democrático da existência humana.

Ainda assim, negamos. A ternura. A gentileza. A delicadeza. Negamos o amor, o olhar verdadeiro que sustenta vínculos, o tempo partilhado, a presença real. Negamos o presente – a mesa com quem amamos, a praia entre os amigos, o gesto gratuito e sem interesses escusos.

Mas… Que potência é essa que faz com que seja mais fácil a humanidade chegar até à lua do que a si? Que força é essa que nos impede de criar conexões profundas e verdadeiras conosco e com o outro? Que mistério é esse que envolve o acesso aos sentimentos que tornam a vida graciosa e bonita?

Seguimos negando tanto, que passamos a negar até a nós mesmos. E o mais preocupante: percebemos, mas não queremos ver. Dissociamos. Automatizamos. É como se fôssemos robôs a serviço do que esvazia a alma. Transformamos até os afetos em obrigações. Os hobbies, agora, precisam ter função e logo viram produto.

Vivemos exaustos, mas negamos o ócio. A pausa. O banal. Nos adaptamos até ao que nos machuca. Porque, muitas vezes, preferimos o nocivo e o conhecido ao saudável e ao novo. É como se a psiquê só encontrasse lugar no mundo quando sabe, ainda que inconscientemente, o lugar que sangra.

Mas é no que não tem utilidade e não serve para nada que a alma verdadeiramente se reconhece. Naquilo que não dá lucro, nem cliques, nem Lattes, nem engajamento. Só precisamos estar, por vezes, naquilo que é só nosso.

Mas como, se nunca temos tempo? Não temos tempo para nós e, consequentemente, não encontramos disponibilidade de tempo para o outro. O autoabandono vira regra e a ausência afetiva, ensinada principalmente às crianças, é normalizada pela justificativa da agenda.

O que estamos ensinando? Que, em nome da produção, está permitido negligenciar quem amamos? Que a ausência pode ser compensada por presença produtiva? Por presentes?

Enquanto alguns se anestesiam com essa lógica, tantos outros só queriam não precisar trabalhar dez horas por dia, nem passar quatro horas dentro de uma condução só para ter tempo com seus filhos e seus amores. Por mais impressionante que pareça, a vida insiste em acontecer por contraste.

Negamos, talvez, porque tudo o que é ao mesmo tempo avassalador e singelo nos assusta… Porque, de uma forma ou de outra, nos obriga a olhar para dentro e lá é cheio de incongruências e fragilidades…Nem todos têm coragem de se ver pequenos sem a defesa do vitimismo ou do apego à imagem idealizada de si. Apenas pequenos. Humanos. Cheios de falhas que não têm contornos nem soluções. Humanos demasiadamente humanos.

É preciso coragem para derrubar o ego. Para se enxergar frágil. Insensível. Inseguro. Egoísta. Desproporcional. Autocentrado. Injusto. E, mesmo assim, não perceber passivamente, mas com a força de quem encara se autorresponsabilizar. É ser verdadeiro consigo sem autocomiseração e sem autocrítica cruel e desmedida. É encontrar a justa medida – essa corda bamba entre o reconhecimento autêntico e corajosos das próprias sombras, a dignidade de resistir à vida em pé e à teimosia de quem não aceita continuar o incerto percurso da vida de forma medíocre.

Essa justa medida, aliás, nada mais é do que uma utopia. E não é porque habita apenas no mundo das ideias que se torna inútil ao nosso plano concreto. Pelo contrário. Ela funciona como um fio leve e inalcançável que se coloca à nossa frente. A cada passo largo que damos para atingi-la, os fios se afastam rumo ao horizonte infinito, mas não a ponto de os perdermos de vista. Não para nos frustrar, mas para que continuemos a caminhar. A buscar. A ir. Porque, talvez, o sentido não esteja em cruzar a chegada, esteja em persistir na caminhada da vida. E com o coração reluzente, mesmo diante da dureza que é chegarmos ao único lugar que primeiro importa: a nós mesmos.

Por tudo isso e talvez por muito mais, temos medo do amor. E de tudo que decorre dele e de cada detalhe que nos escancara sobre o outro lado. Continuamos incessantemente a construir muros intransponíveis contra aquilo que mais profundamente nos constitui por puro medo de ser, de estar, de acessar e de encarar.

Medo de nós e do amor, que deveria ser abrigo, mas se tornou ameaça. Medo da generosidade, que deveria ser natural, mas virou exceção da exceção. Mesmo com todos esses medos, como aprendemos a temer de forma quase irrevogável o que há de mais bonito no que nos faz humanos?

O que nos dá um respeito é vermos que, apesar do medo, há quem escolha, na prática, agir com amor e com generosidade. E essas pessoas merecem o nosso mais profundo respeito. Há quem decida pelo bem, mesmo quando isso pareça antinatural, contraintuitivo, mesmo quando dói. Há quem escolha enxergar o outro, estender a mão e oferecer abrigo, mesmo entre ruínas, embora também cuidando de si e buscando forças para se reerguer. Se isso não for amor, a vida não é real.

Particularmente, sinto que estarmos aqui só faz sentido quando deixamos de ser Narciso e nos inclinamos ao outro. Até porque Narciso não nem a si via, e o pior engano é o de quem cai nas armadilhas do próprio eu. Ele não idolatrava a si, e sim a sua imagem construída, estática, idealizada e, portanto, irreal. Ninguém idolatra o que é real, porque pulsamos, somos sempre cheio de falhas, intensidades e contradições. Quem sabe, se fizermos as pazes com a ideia que temos de nós, terminássemos conseguindo agir com mais amor? De nada adianta sermos feitos de amor, de sensibilidade e de gentileza se isso não sustenta, na prática, a presença efetiva, a verdade emocional e o compromisso real.

Mas o que é o amor? Como é agir com amor? O que é o bem?

Diante do gesto, as inúmeras teorias filosóficas parecemdistantes. Agir com amor é tão simples que pode se tornar complexo. Agir com amor é se desfazer um pouco de si e ver um pouco o outro. É perceber que alguém que você ama chegou cansado do trabalho e preparar algo para fazê-lo feliz. É notar quando alguém especial está triste e se fazer presente de alguma forma. É fazer algo por quem sequer teve o direito de existir com dignidade. É liberdade. É uma decisão. É, também, se respeitar. É o amor entre casais, mas não só entre eles. É o amor presente em todas as nossas relações. É ouvir os nossos limites. É não tentar caber. É se posicionar. É compreender. É querer o trabalho de construir. É ter paciência, porque mais fácil do que dialogar para consertar, é descartar. É, sobretudo, escutar bonito, sem pressa, em meio ao século em que, mais do que nunca, tempo é dinheiro. Fora disso, é qualquer outra coisa, menos amor.

Agora, fato é: só ama quem tem sensibilidade. Mais difícil do que ensinar o conceito, é ensinar alguém a trazer para o mundo sensível o que está no plano das ideias, no abstrato. Como ensinar alguém a agir com sensibilidade? Como ensinar alguém a enxergar a si e ao outro? É neste momento que me percebo questionando se nós somos mesmo uma tábula rasa, já que não vejo como tudo isso possa ser genuinamente sentido e aprendido.

Sinto que é como o toque de uma pena: sutil, mas capaz de transformar o mundo. Não se ensina, mas se sabe. Há um saber silencioso, quase inato e metafísico. Uns acessam com facilidade. Outros, com esforço, mesmo que seja por exclusão. Mas todos nós sabemos.

Porque o amor é força bruta, mas também sutileza. É o que nos humaniza e, paradoxalmente, o que nos expõe à nossa própria fragilidade. É presença, mas indica ausência. Avassalador, mas delicado. Misterioso, mas cognoscível. É, e também deixa de ser. É trivial e, ainda assim, anda raro. É vida, mas também revela a falta dela.

Entre caminhadas, sombras, quedas e buscas, é no amor que a gente se ampara e encontra coragem pra seguir com ternura pelas estradas da vida.

Quando a existência pesar.. Quando os pesos apertarem. Quando julgarem o nosso coração. Quando nos desacreditarmos ao dizer que somos infantis por sentirmos o mundo com a sensibilidade de uma criança, que a gente lembre: acreditar na potência da vida é essencial, a esperança é o que permite ter o ímpeto de seguir, mas é o amor que sustenta.

E entre os três, lembremos: o maior deles é o amor. Sempre. E sempre… é sempre.

Tenho pra mim que o amor é a mais bonita e a mais profunda contradição — aquela que torna a vida um lugar habitável. No fim, mesmo com tudo o que pesa, machuca e nos faz duvidar do ser humano, o amor ainda vale. Vale a incerteza. Vale a audácia. Vale a coragem. Vale a pena pelo que é, sem ser meio pra nada. Vale porque nos escapa o tempo inteiro. Vale a pena porque pulsa para muito além do bem e do mal.

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