Sociedade
Os desafios da vida dos entregadores de aplicativo
Jefferson Tafarel, Ranyere Fonseca
Ir de um ponto A ao ponto B numa moto exige dedicação numa região cujo trânsito fica cada vez mais perigoso. Uma amostra disso está em Natal/RN, onde as multas por ultrapassagem de velocidade máxima permitida são a maior parte das infrações registradas nas rodovias da cidade, somente em 2021, de acordo com dados coletados pela Secretaria de Mobilidade Urbana de Natal (STTU). Esse e outros tantos desafios são enfrentados praticamente sete dias por semana por entregadores de aplicativos.
Esses profissionais são, em sua maioria, autônomos: têm responsabilidade sobre suas próprias necessidades —itens como mochila térmica e máquina de cartão são adquiridos por eles mesmos— e sobre os eventuais problemas que aconteçam com eles durante o trabalho. Ou seja, não podem recorrer a dispositivos legais como Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) ou mesmo ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Além disso, os entregadores geralmente possuem rotinas de trabalho que chegam a mais de 10h por dia, com um rendimento mensal inferior a mil reais, dependendo do quanto o colaborador se dedica à realização das entregas.
Trabalhador no ramo, Clauderico (34) relata algumas experiências com os aplicativos de entrega. “Teve dia em que o cliente mandou devolver a comida devido a demora, não por nossa culpa e sim por causa do estabelecimento”, conta.
Ele trabalha há dois anos com entregas por apps, chegando a ficar até 12h em serviço e recebendo em torno de dois salários mínimos por mês. Além disso, sua experiência com vendas deu uma força no relacionamento com os clientes durante o trabalho: “me ajudou a saber conversar e ter paciência com as pessoas, tanto clientes como fornecedores”, afirma.
“[Fico] procurando sempre ficar em um lugar onde mostra que a dinâmica está boa. Fico muito em Ponta Negra (bairro da região sul de Natal), por exemplo, ou perto de galeria que vendem comida”, explica Clauderico sobre sua rotina. O entregador conta que, às vezes, alguns clientes chegam a oferecer comida e água para os entregadores.
Entretanto, outras situações não são tão favoráveis. Alguns clientes “ligam para o estabelecimento, informando que a entrega está conosco sem estar”, diz o entregador de Natal/RN.
Em alguns aplicativos de entrega, como o IFood, existe a possibilidade de se contratar um seguro de acidentes pessoais, porém o recurso só cobre o motoboy ou ciclista enquanto estão realizando entregas ou no trajeto de volta para casa. Em casos de lesões temporárias, o reembolso pode ser de até R$ 700,00. O seguro não cobre eventuais problemas com veículo nem a perda de equipamento.
Por causa desses e de outros casos envolvendo problemas com entrega por aplicativos, foi realizada uma manifestação que nas redes sociais ficou conhecida como BrequedosApps, promovida em julho de 2020. Entre as pautas reivindicadas à época em Natal, segundo apuração realizada pela Tribuna do Norte, estavam “o aumento da taxa mínima pago por quilômetro rodado, uma ajuda de custo para aquisição de equipamentos de proteção individual (EPIs), o fim dos ‘bloqueios indevidos’ feitos pelos aplicativos aos trabalhadores, que não possuem critérios definidos pelas plataformas”.
“Um trabalhador que percorre nossas ruas de bicicleta para um aplicativo não é um empreendedor” disse Yolanda Díaz, ministra do trabalho da Espanha, em coletiva de imprensa em março deste ano que anunciava a garantia de direitos trabalhistas para os entregadores de aplicativo. Segundo matéria veiculada pelo G1, o governo espanhol reconheceu a relação empregatícia entre apps e entregadores. Além disso, as empresas deverão ceder aos sindicatos informações sobre o funcionamento dos algoritmos que impactam a remuneração do, agora considerado, trabalhador.
Entrevista
Para entender mais como a legislação brasileira define normas para a realização do trabalho com aplicativos e como as leis asseguram o serviço dos entregadores, a nossa equipe entrevistou Luiza Barbosa, mestranda em Direito pela UFRN.A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) define o trabalho com aplicativos como equivalente ao trabalho realizado pessoalmente.
“A legislação brasileira exige para o reconhecimento do vínculo de emprego que o trabalhador seja pessoa física e trabalhe com pessoalidade”, explica a advogada. “E não eventualidade, onerosidade e subordinação, sendo o último elemento o foco das empresas de aplicativo para afastar a relação de emprego sob o argumento de que os entregadores seriam independentes”.
“Os entregadores de aplicativo estão subordinados por meio do algorítmico que os convoca ao trabalho, constantemente fiscaliza a execução do labor, os pune, além de ser essa programação a responsável por fixar a remuneração devida e verificar o critério da pessoalidade”, acrescenta a pesquisadora.
“Esses trabalhadores [de entrega por apps] podem também entrar com ações no poder judiciário e no Ministério Público do Trabalho”, explica. Alguns projetos já procuram resolver a ausência de legislação para o trabalho de entregas por aplicativo, como no caso dos projetos de lei (PL) nº 3748, de 2020 —de autoria de vários partidos, como PDT, PT, MDB, entre outros, tem como objetivo estabelecer condições de trabalho nas atividades de entrega de produtos ou serviços via plataformas digitais — e o PL nº 4172, também do ano passado — de Henrique Fontana (PT/RS), o projeto tenta assegurar uma série de direitos para os entregadores de aplicativos, como a escolha do horário de trabalho, a redução de danos e riscos, além de prever a obrigação das empresas contratantes de pagar os serviços prestados em até 72h.
Entretanto, uma pesquisa feita pelo Ibope em julho de 2020 aponta que 70% dos entregadores de aplicativo preferem a atual forma de trabalho ao invés do regime via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), principalmente pelo medo de ficarem limitados quanto a horários e ganhos. Para Luiza, “esse receio da limitação de horário decorre do próprio modo como o aplicativo faz o trabalhador pensar que precisa sempre estar trabalhando para poder garantir sua subsistência”.
“Ocorre que uma limitação de jornada e uma remuneração justa são direitos trabalhistas essenciais para que o trabalho seja digno e decente seja assegurado”, garante a especialista. E os direitos relacionados à saúde física e mental dão mais dignidade ao serviço dos entregadores, segundo Luiza. “De nada adianta ter uma remuneração apta a sustentar seu custo de vida, se a saúde e a própria vida do trabalhador estão sendo prejudicadas”, afirma.
A pesquisa de Luiza Barbosa, A precarização das condições de trabalho pela uberização, aponta que quase 70% dos motoristas de aplicativo, entre eles entregadores, têm como único trabalho o serviço prestado às plataformas digitais, além do fato de trabalharem de 8h a 15h por dia. A regulamentação dos apps, que foi objeto de estudo em sua monografia, pode “assegurar condições dignas de trabalho” aos entregadores.
Segundo a pesquisadora, não haveria necessidade de “realizar jornadas exaustivas, podendo usufruir do descanso e lazer, além de ser assegurado a eles uma remuneração mínima”.
Para entender melhor o fenômeno da uberização, ouça também nosso podcast: