Opinião
No fim do arco-íris há um… inferno?
Como experiências cristãs afetam a vida de pessoas LGBTQIAP+
“O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e seu sangue cairá sobre eles” (Levítico, 20:13).
Geralmente, esta é uma das primeiras afirmações que pessoas LGBTQIAP+ ouvem de cristãos sobre quem são. Essa sentença é proferida por gente “de confiança”. Amigos, primos, pais, mães.
Algumas vezes, tentam amenizar a dureza desse versículo com frases como “Deus ama o pecador, mas abomina o pecado”; “Jesus pode te curar”; “isso não é normal”; “Deus não comete erros”.
Assimilar essas opiniões sobre si, de pessoas que você respeita, confia e ama, deixam marcas profundas. Feridas que machucam por muito tempo e, mesmo depois de cicatrizadas, ainda podem assombrar em momentos de instabilidade emocional.
“Será que tudo isso é porque eu sou trans? Estou sendo castigada por ser eu mesma?”
Uma das primeiras mulheres trans do Brasil a morar em uma residência universitária feminina, Emilly vem de família com raiz católica. Na infância, foi coroinha, fez catequese e até crisma, mas na adolescência se identificou com o protestantismo. Ao contar para a família que era uma
mulher transsexual, ela foi agredida com uma raquete e expulsa de casa. Mas a primeira marca veio antes, ainda na igreja evangélica.
“Eu era aquele homenzinho magrinho, de terno, bíblia embaixo do braço. Cheguei a contar ao pastor sobre as práticas autoeróticas e o pensamento em garotos – ali eu ainda não me entendia como trans. Ele me disse para orar e jejuar, pois isso era ‘seta do inimigo’. Até que toda a igreja
soube da nossa conversa e eu fiquei muito mal vista. Só me sentia mais culpada, me achava uma aberração, afinal a Bíblia diz que afeminados são considerados aberração. A minha autoestima era péssima, eu achava que não podia existir pessoas como eu, e acabei saindo da igreja”.
Pensando sobre sua personalidade, Emilly acredita que hoje seria alguém muito diferente se não tivesse experiência com o cristianismo: “Quando eu acabei sendo convidada a me retirar da casa dos meus pais, pela segunda vez, foi inevitável não pensar: ‘Será que tudo isso é porque eu sou
uma pessoa trans? Meu Deus, eu estou sendo castigada por ser eu mesma?’. A gente aprende que tudo é errado e leva ao inferno. Então sim, eu seria mais livre, solta, expansiva e menos castrada. Sentiria muito menos culpa sobre os meus atos. Eu luto contra esses pensamentos diariamente e tento abstrair pra que isso não me limite, não me abata”.
“Ou você muda e encontra um verdadeiro amor, ou segue esse caminho que será horrível pra você”
Criado na igreja católica, Pedro chegava a ser mais atuante que os próprios pais, mesmo nunca tendo vivido no armário. O fato de ser gay sempre foi algo natural em sua mente e em sua casa. Ele acreditava que contar sobre quem era poderia fortalecer outras pessoas e ajuda-las no processo
de autoaceitação.
“Sempre cantei na igreja e fiz parte de grupos de jovens. Cheguei a compor a coordenação de um Segue-Me (encontro de jovens católicos) e foi ali que as coisas começaram a não fazer sentido. Eu vi meninas serem impedidas de servir no encontro porque dançavam na praça, e outras pessoas
por viverem um relacionamento homoafetivo. E eu me perguntava, porque poderia fazer parte da coordenação, já que sou gay?”
Quando Pedro começou a namorar outro rapaz e não escondeu a relação, as consequências vieram rápido. Isolado de todos os serviços da igreja, passou a ser confrontado sobre seu estilo de vestir e, por fim, recebeu o ultimato de alguns amigos: “Ou você muda e encontra um verdadeiro amor, ou segue esse caminho que será horrível pra você”.
“É absurdo pensar em gente lá dentro que comete erros reais, mas dita regras. É um sistema hipócrita, corrupto e excludente que me tornou uma pessoa ferida. Mas hoje não aguento nada de cabeça baixa. Sou um leão que sempre vai lutar, debater e defender os nossos”.
“Eu saí de lá quando vi a forma que trataram meu irmão por ele assumir sua sexualidade”
Na tentativa de passar mais tempo com o seu irmão mais velho que, na época, vivia o protestantismo, Amanda visitou a igreja e acabou se tornando membra. “Como eu comecei muito nova, a influência dos valores bíblicos foi bem profunda em mim, então eu não questionava.” Sua visão passou a mudar aos quinze anos, quando seu irmão se afirmou como um homem gay.
“A igreja inteira soube da sua sexualidade, e o submeteu a orações, estudos e leituras. Ele iniciou um relacionamento com uma garota, e o pastor chegou a aconselhá-lo a ‘viver tudo do namoro’. A relação durou poucos meses e, então, ele foi impedido até mesmo de passar as letras das músicas
durante os cultos. Eu saí de lá quando vi a forma que trataram meu irmão por ele assumir sua sexualidade. Vi meu irmão definhar, chorar diversos dias, buscando outras igrejas, mas o resultado era sempre o mesmo. Até que ele finalmente se encontrou e decidiu viver”.
Alguns anos depois, Amanda passou a perceber sua sexualidade de uma maneira mais ampla e se identifica hoje como pansexual. “Eu já não estava mais na igreja e, mesmo assim, ficaram alguns vestígios de bíblia que me faziam chorar e pedir perdão ao deus cristão. Hoje eu tenho a minha
forma de crer, e a bíblia se tornou apenas um livro comum”.
“Minha mãe gritava que me preferia morto. Meu pai sorria e dizia que poderia descarregar o revólver na minha cara, mas, como servo de Deus, iria me salvar”
Filho de pastores evangélicos, escolher se teria religião nunca foi uma possibilidade para o Jean. Usar gravata, cantar, pregar, liderar e nunca estar insatisfeito com os rituais impostos pelo pai pastor. Essa era a sua rotina.
“O cristianismo me parecia cruel e assustador. Regras seguidas por medo do castigo divino ou pela ambição do milagre, de riquezas. Pregações de intolerância às outras crenças, submissão da mulher. Por um tempo achei que fosse apenas na igreja do meu pai, mas quando visitamos outras, vi tudo se repetir”.
Totalmente em paz consigo mesmo e sua orientação sexual, Jean ainda lembra as marcas que o cristianismo lhe deixou, mas comemora uma certeza: “Um dia meus pais me flagraram com um menino em casa. Minha mãe gritava que me preferia morto. Meu pai sorria e dizia que poderia descarregar o revólver na minha cara, mas, como servo de Deus, iria me salvar. Leu versículos, confessou adultério, mas disse que havia sido perdoado porque tinha sido com uma mulher, mas eu não seria perdoado tão facilmente. Me fez ‘escolher’ naquele momento entre uma vida natural, que abençoaria minha família e a igreja, e uma vida não natural, que seria a ruína da nossa família.
Ele jogou em um jovem de 17 anos a responsabilidade de uma família feliz ou destruída. Eu disse o que ele queria ouvir, mas naquele instante eu decidi dar um basta e procurar criar minha própria vida antes que, de fato, eu morresse em nome do amor de Deus”.
Não existe amor de Cristo para os LGBTQIAP+?
Há pouco mais de 15 anos, Natal começou a receber as chamadas igrejas inclusivas. Comunidades cristãs, geralmente lideradas por pessoas homoafetivas e com foco em evangelizar esse segmento da sociedade. Daniela Modesto, é pastora da Igreja Cidade de Refúgio, e explica que esses são lugares onde o LGBTQIAP+ pode ser acolhido.
“’Aqui você encontrou um lugar que te ama e te aceita e, por isso, vamos te confrontar’. É isso que eu digo pra quem chega. No entanto, é preciso lembrar que algumas práticas devem ser abandonadas. Os ocidentais acreditam que sofrimento não é pra nós, mas sofrer também faz crescer. Alguns se acostumam à vida de promiscuidade que a sociedade quer impor aos homoafetivos, mas nós acreditamos que esse caminho não é saudável e guiamos os nossos”.
É possível se curar
O Brasil tem raiz cultural submersa em uma série de preconceitos que ditaram os costumes e reações por muitos anos. A cada dia vemos mais movimentos contrários a essa cultura arcaica e patriarcal que ainda aprisiona e oprime muitas pessoas, seja através do machismo, homotransfobia ou racismo. A luta deve continuar até que esses comportamentos que segregam partes da população sejam erradicados.
No entanto, alguns oprimidos precisam se curar antes de voltar à luta. Essa cura, de acordo com o psicólogo Fábyo Bernardo, não vem através da vingança, do isolamento ou mesmo da culpabilização dos opressores. É preciso se colocar no centro e fazer o que nós mesmo podemos.
“Nós só somos responsáveis pelo que nós fazemos e escolhemos. Não foi você que escolheu passar por esses traumas. Não foi você que promoveu o trauma. Mas é você que pode ir além, que pode se colocar no centro, se ouvir, se respeitar e transcender esse trauma. Não depende do outro. Se ouça, se ame do jeitinho que você é. Nada mais importa”.
Produzido com intuito acadêmico e adaptado para a publicação. Pauta de escolha do autor da disciplina de Jornalismo Literário, na UFRN.