Esporte
Operação 1942: o Campeonato Potiguar que não terminou
O novo coronavírus parou o mundo e o universo da bola. Ficar sem futebol é muito ruim, mas já imaginou ser a única cidade do Brasil sem ter a pelota rolando? Foi o que aconteceu em 1942, enquanto o globo voltava suas atenções à guerra, Natal, capital do Rio Grande do Norte, teve seu Campeonato Estadual interrompido, e, assim, não houve quem levantasse a taça.
A Segunda Guerra Mundial era o cenário no início dos anos 1940. Porém, o povo brasileiro não presenciou esse acontecimento de modo que não fosse por meio das manchetes dos jornais e plantões radiofônicos.
Por outro lado, uma cidade do Brasil viveu o conflito mais de perto e teve sua pacata rotina alterada por tropas dos Estados Unidos. O país do Tio Sam buscava um ponto estratégico seguro para a grande ponte aérea que permitisse o envio suprimentos, o material bélico e o transporte de tropas para a África.
Poeticamente apelidado de Esquina da América, o litoral do Rio Grande do Norte foi escolhido para se tornar o famoso “Trampolim da Vitória”, alcunha que remete à privilegiada posição geográfica do território potiguar em relação à Europa e África.
A implantação de uma base das forças armadas dos Estados Unidos no Brasil surgiu após um acordo entre os presidentes Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt: enquanto verbas estadunidenses financiariam a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), terras brasileiras serviriam de apoio ao conflito.
Localizada a 20 km da base da Força Aérea dos Estados Unidos no Rio Grande do Norte, Natal foi surpreendida com a chegada de 10 mil soldados, inúmeros aviões e cerca de 100 voos diários.
Naquele momento, da noite para o dia, o natalense viu seu cotidiano mudar. Apesar de ser uma das capitais mais antigas do país, fundada ainda no século XVI, Natal incorporou costumes dos novos habitantes. Os soldados americanos que passaram a viver na cidade apresentaram ao natalense, produtos como a Coca-Cola, o ketchup, o jeans, mas também foram corresponsáveis por interromper uma das maiores paixões locais: o futebol.
Com toda essa movimentação bélica em território brasileiro, em 31 de agosto, por meio do decreto nº 10.358, Getúlio Vargas determinou estado de guerra contra as Potências do Eixo — Alemanha, Japão e Itália. Entre tantas outras dificuldades causadas no país, no Rio Grande do Norte, o decreto inviabilizou a retomada do Campeonato Potiguar.
Retomada, pois a edição de 1942 do Campeonato da Cidade, como o Estadual era chamado na época, contou com apenas nove partidas — segundo dados do pesquisador do futebol potiguar, Marcos Trindade — e estava paralisada desde o dia 2 de agosto, entretanto, não foi somente a guerra que influenciou na interrupção da competição.
O motivo para a paralisação desde o início de agosto? O Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais. Anterior ao Campeonato Brasileiro de clubes, a disputa movimentava o cenário futebolístico nacional, era organizada pela Confederação Brasileira de Desportos e reunia os melhores jogadores de cada estado.
Com o certame nacional de seleções marcado para acontecer em outubro, Gentil Ferreira de Souza — presidente da Federação de Desportos do RN da época e que posteriormente fora destituído –, decidiu que seria melhor priorizar a preparação da seleção local e, assim, em 20 de setembro de 1942, o mandatário assinou o ato nº 17 que foi publicado no jornal “A República”.
O periódico informava a necessidade do “indispensável preparo técnico da apresentação desportiva” do elenco norte riograndense, de acordo com os registros cedidos por Trindade.
Naquele ano, o apito do juiz foi deixado de lado e deu lugar ao som dos aviões americanos que saíam do Trampolim da Vitória carregando suprimento e homens em direção ao norte da África.
Na única cidade do Brasil sem futebol, quando o medo tomou conta da população, nem mesmo a paz no sobrenome do então novo presidente da Federação, capitão Porfírio da Paz, foi suficiente para impedir o cancelamento do Campeonato de 42.
Paralelo a isso, também se desejava a preservação do gramado do Juvenal Lamartine para a competição nacional. Fato é que pouco adiantou toda a preparação e a minuciosa preservação do campo, o mais antigo estádio natalense foi palco do jogo entre as seleções do Rio Grande do Norte e da Paraíba, ocasião em que a seleção local perdeu por 5 a 0.
Algumas ilegalidades também podem ser apontadas como motivo para o fim do Estadual, como a existência de clubes filiais, que disputavam o campeonato apenas para facilitar conquistas de suas matrizes, segundo alegações, na época, de equipes como América e Alecrim e que nunca foram bem apuradas.
O conflito favoreceu a não retomada do futebol norte riograndense. Oficialmente, o “Campeonato Potiguar da guerra” foi cancelado em 12 de fevereiro de 1943, no ato nº 23, publicado no jornal “A Ordem” quatro dias após a decisão e assinado pelo capitão Porfírio. A digitalização também faz parte do acervo pessoal de Marcos Trindade.
Em relação à América do Sul, a guerra também não influenciou diretamente para a paralisação do futebol, os anos 1940 foram um período extremamente rico em craques e grandes competições. Datam desta década possíveis seleções argentinas, brasileiras e uruguaias apontadas como favoritas ao título das duas edições de Copa do Mundo não disputadas.
Apesar de não ter parado como aconteceu em solo potiguar, algumas intervenções foram impostas. No Brasil, um decreto-lei obrigou o banimento de símbolos e nomes relacionados aos países do Eixo.
Alguns grupos e associações de origem alemã, japonesa e italiana precisaram mudar seus nomes originais, na época, os atuais Cruzeiro e Palmeiras foram obrigados a abandonar o “Palestra Itália”, em virtude do decreto que permitia o confisco do patrimônio das agremiações que fizessem qualquer tipo de menção aos países do Eixo.
Quando o natalense temeu a guerra e dele foi tirado o prazer de contemplar o esporte do povo, o Rio Grande do Norte foi o único lugar no Brasil sem futebol, sem turno, returno e sem campeão, mas com uma porção de polêmicas fora do gramado. Essa foi a realidade do Campeonato Potiguar de 1942, a competição que nunca terminou.