Com a palavra, Luiza
O que os clichês querem nos dizer?

Às vezes me pego pensando que os clichês existem não porque sejam superficiais, mas porque escondem, sob a aparência de obviedade, verdades difíceis demais de encarar. Tão difíceis que preferimos transformá-los em frases de efeito para não lidarmos com a mensagem que carregam.
Talvez seja por isso que desviamos deles como quem se protege, mas também como o diabo que foge da cruz: por medo. No fundo, sabemos que, se olharmos tempo suficiente para certas verdades, alguma parte de nós não (pode) voltar intactas, em que pese, voltem. Aí é a questão.
Talvez o que mais tememos seja justamente aquilo que desorganiza tudo: as verdades que, sem pedir nenhuma licença ou oferecer algum indicativo, desarrumam as narrativas que nos apoiamos…
Uma dessas verdades, talvez a mais antiga e a mais evitada, é a de que no fim das contas, somos nós por nós. Não no sentido isolado ou egoísta, mas sob aquela perspectiva de que há travessias que só podem ser realizadas por nós porque são constituídas de uma substância emocional que ninguém mais alcança. Cada um de nós tem seus caminhos internos que não cabem em nada e cabem em tudo…
Quando o medo chega, é a gente por a gente. Quando a dúvida paralisa, é a gente por a gente. Quando a vontade de parar nos faz parar, ainda assim é a gente por a gente. Lembrar que não existe substituto para o próprio eu no enfrentamento do que é mais íntimo é o que há de mais existencial. De fato, não dá para encarar tantos clichês, não é mesmo?
É nesse ponto que começa a aparecer aquilo que nos moldou desde sempre, ainda que de forma imperceptível. Tudo fica ainda mais difícil porque crescemos acreditando que, nos momentos decisivos e especialmente difíceis, apareceria alguém. Alguém que entendesse sem explicação e justificativas, alguém que segurasse a barra na hora da queda, alguém que chegasse com a solução que não tínhamos forças para construir. A fantasia de resgate, que parece tão infantil, termina por nos acompanhar muito além da infância…
E como toda fantasia antiga, meio que se mimetiza com a forma pela qual funcionamos.Para uns, a busca é tão profunda que se colocam constantemente como esse “alguém” para o outro e vêm da pura impossibilidade de se colocar como esse alguém para si! Afinal, no fundo, quando salvamos o outro, estamos, de certa forma, nos salvando e isso não é (de todo) ruim.
No entanto, eu estava pensando… Se fosse possível que alguém viesse nos salvar, quem viria? Quem definitivamente viria? Em um mundo tão individualista, autocentrado e frenético, em que quase todos olham para si mesmos e tão poucos olham ao redor, quem estaria?
O mais inquietante é perceber que, apesar de eu sempre ter me colocado contra essa lógica do salve-se-quem-puder, é exatamente a ela que ando recorrendo quando tento me proteger, apesar de sempre ter resistido e ter severas críticas… Mas, também ando aprendendo a me compreender! Quem sempre deu demais aprende a sobreviver dando de menos. É um tipo estranho de amadurecimento, quase uma sutura improvisada feita muito às pressas para segurar o que ainda pode ser, de alguma forma, sustentado.
E quando essa compreensão chega, de repente voltamos para a pergunta inicial, agora com outra profundidade e contornos. Talvez os clichês sejam difíceis justamente porque são verdadeiros demais, crus demais, diretos demais. Eles dizem, de maneira paradoxalmente simples aquilo que só se torna evidente quando a vida desmonta o que há em nós de mais estruturante.
O que chamamos de força, muitas vezes, é apenas a coragem de assumir que ninguém passa pela nossa dor por nós. E o que chamamos de maturidade, talvez seja somente a dissolução da fantasia de que alguém virá, algum dia, nos salvar no exato ponto em que precisamos… É nessa constatação que mora a solidão existencial que não há o que cure, console ou diminua… E o que não tem remédio, remediado está.
É por isso mesmo que essas verdades soem tão antigas, quase ancestrais: elas sobrevivem porque não há como contorná-las ou solucioná-las. Porque, apesar do mundo, apesar do cansaço, apesar do medo e das dores que são indizíveis e inefáveis, existe uma força que permanece: essa estranha e necessária capacidade de, quando tudo parece à beira do habismo, ser de novo nós por nós. E existe uma grandeza, de novo e sempre, de se reconstituir, de ser nós por nós, mas também de continuar sendo nós pelo outro (ainda que simbolicamente).
E é aqui que aquilo que é universal encontra o que é profundamente meu.
Confesso que ainda não consegui. Sempre fui pelo outro. Ter não só a consciência, mas a vivência, de que, apesar de ser o outro para o outro, para mim o outro sempre teve que ser eu – e assim ainda é e será – tem sido um ponto de inflexão.
Prometo fazer disso o maior divisor de águas da minha vida, porque potencial para ser o maior precipício, tem. Mas não vai ser. Não vai ser não porque tenho forças para combater, muito menos por vir de um otimismo ingênuo, mas por ser uma decisão. Qual é a outra alternativa? Não há. Quando não existe, surge a mola propulsora das coragens, que brota em meio ao asfalto mesmo – Drummond tinha razão.
E ao reconhecer esse ponto, certas coisas que antes pareciam desconexas começam a fazer muito sentido.
Ainda que eu esteja ferindo agora, lembro quando escrevi sobre a força que há em ser ferida aberta e, ainda assim, não ferir. E isso diz muito sobre a organização afetiva que sempre tive e que não há ser humano no mundo que possa retirar de mim em definitivo: a capacidade de sustentar a dor sem devolvê-la para o mundo, como se eu fosse, ao mesmo tempo, continente e contenção.
É aí que entra a parte mais difícil: perceber que continuar sendo “o outro para o outro”, sem voltar simbolicamente para mim, é viver numa espécie de identificação invertida: eu me reconheço na função, não na existência. E isso, se eu não cuido, vira precipício mesmo: uma vida que pode passar a ser constituída por circunstâncias em que eu não apareço inteira, só útil, só presente, só disponível.
E quando esse reconhecimento finalmente aparece, fica mais evidente do porquê reagimos como reagimos!
É por isso que, sim, podemos até ferir por um tempo. Podemos até replicar o que nos causa dor – e me ver neste lugar e não me culpar tanto por isso já faz parte do processo; quem sabe, daí também? – Porque, em algum nível, a dor retorna como repetição. A psicanálise chama isso de repetição que busca sentido: não é a vontade de machucar, é a tentativa confusa de reorganizar o que ficou interrompido dentro de nós. E é quase confundível o adocido e o curado demais. Ambos costumam ser ensimesmados do mesmo jeito, incompreensíveis e reativos, como se estivessem ocupados demais em se proteger para realmente olhar. Às vezes, a doçura excessiva e a cura declarada demais são defesas diferentes da mesma coisa: o medo de tocar na ferida viva. Uma fecha; a outra disfarça. Ambas evitam!!!
É por isso que, sim: o amor é curar sem ferir. E, sobretudo, é estar ferido e, ainda assim, curar. É aqui que se diferencia da repetição: não no apagamento da dor, mas na capacidade de transformá-la, de transmutá-la. O que há de mais singelo e bonito do que isso? Curar alguém – mesmo machucada e enquanto também se cura – é o ponto em que a história deixa de se repetir. E isso, talvez, seja o movimento mais amoroso conosco e com o outro que exista.
