Opinião
Preta Gil e a coragem de viver fora dos padrões

Acompanhei Preta Gil desde suas primeiras aparições como cantora. Ainda jovem, a vi envolvida nas polêmicas que cercavam sua figura pública: o peso do sobrenome, o julgamento constante por ser filha de Gilberto Gil, afilhada de Caetano Veloso e sobrinha de Gal Costa. Uma herança artística que, ao contrário do que muitos pensam, não foi sinônimo de aceitação imediata. Preta sempre enfrentou o rótulo de nepo baby — termo que se popularizou recentemente e se refere a filhos ou parentes de pessoas famosas que, em tese, se beneficiam da visibilidade herdada. Mas ser uma nepo baby nunca blindou Preta das críticas cruéis, do racismo, da gordofobia e do machismo.
Ela ousou ser o que era: mulher, preta, artista, fora dos padrões — estéticos, comportamentais, midiáticos. Desde a capa de seu primeiro álbum, em que apareceu com o corpo nu e exposto à interpretação pública, Preta se tornou símbolo de resistência, autenticidade e, sobretudo, coragem. Foi atacada por não corresponder ao ideal de corpo imposto à mulher brasileira. Enfrentou julgamentos e ódio gratuitos por ser quem era — em forma, tom de pele, postura, voz.
Por muito tempo, resisti à comparação que minha avó Antônia fazia entre nós. “Você parece com Preta Gil”, dizia ela, especialmente quando eu usava o cabelo preso. Eu não gostava de comparações — e ainda não gosto. A única com a qual me identifico é com minha mãe, que é meu maior exemplo de força e resiliência, além claro da aparência física, diria cópia autenticada.
Mas hoje, compreendo o que minha avó enxergava. Também sou fora dos padrões. Tenho um corpo que desafia expectativas, uma pele que carrega ancestralidade, um sorriso que insiste em permanecer.
Mas há mais nessa semelhança: como Preta, sou amiga dos meus amigos, mantenho a fé como alicerce e cuido de quem amo com o coração inteiro. Luto pela minha família e me entrego ao trabalho com dedicação. E, principalmente, tento viver com verdade, mesmo quando o mundo insiste em cobrar máscaras.
A notícia da morte de Preta Gil me abalou profundamente. Parecia que alguém da minha família havia partido. Me veio à mente um filme — das perdas mais doídas da vida, da minha vontade de viver que renasce a cada despedida. Mas junto com o luto, veio o aprendizado: viver intensamente, amar sem medo, dizer o que se sente, mudar quando for preciso. E, se o medo insistir em ficar, ir mesmo assim.
Preta nos ensinou que a liberdade de ser quem se é — com todas as imperfeições, dores e afetos — é, talvez, o maior ato de amor próprio e de resistência que podemos praticar. Sua partida deixa um vazio, mas também uma missão: continuar lutando, cantando, sorrindo, cuidando, como ela fez. Obrigada, Preta Maria. Obrigada por tudo e por tanto.
Preta Gil, nome artístico de Preta Maria Gadelha Gil Moreira, foi cantora, atriz, apresentadora e empresária. Nascida no Rio de Janeiro em 1974, era filha de Gilberto Gil e afilhada de Gal Costa e Caetano Veloso. Estreou como cantora em 2003 com o álbum Prêt-à-Porter, marcado por temas como liberdade, corpo e sexualidade. Referência na luta contra o preconceito e engajada em causas sociais, construiu uma carreira autêntica e corajosa. Faleceu em 19 de julho de 2025, aos 50 anos, vítima de um câncer.
