Economia
Comércio de rua: histórias e vivências para contar
Desafios e experiências de quem se dedica todos os dias em locais públicos para garantir sua fonte de renda e colocar comida na mesa
Helena Teixeira e Vinícius Veloso
Acordar cedo, deixar tudo preparado como de costume e ter comprometimento, são fatores essenciais para quem trabalha vendendo alimentos na rua. Não importa se fulano ou beltrano moram em lugares mais afastados do centro da cidade ou em até outros municípios, pois o objetivo principal é conseguir um espaço no mercado de trabalho e garantir alguma renda. Aqui, nesta reportagem, reunimos histórias de seis pessoas que vivem essa experiência, seja por causa da falta de empregos formais, pela necessidade de complementar a renda ou pelo sonho de infância de trabalhar na rua.
Quem passa todos os dias pelo ponto de ônibus do setor 2 de aulas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), está acostumado a ver sempre uma fila formada. A fila, muitas vezes extensa, não é para pegar o ‘Circular’, mas sim para comer o açaí mais conhecido do campus. Nascidos em Lucrécia e Apodi, respectivamente, Francisco Renato, 39 anos, mais conhecido como “Renatão do Açaí”, e a esposa Maria Rosilene, de 35, trabalham com a venda do produto no local há quatro anos. O vendedor trouxe essa ideia a Natal quando decidiu retornar de São Paulo – onde trabalhou por um tempo – para ficar mais próximo da mãe.
Atualmente morando em São José de Mipibu, na Grande Natal, o desafio de se deslocar faz parte da rotina dos dois. Renato começou as vendas de açaí no bairro do Alecrim, mas decidiu investir no Campus da Universidade, quando um amigo o informou sobre a ausência de opções de lanche. “Um conhecido da Igreja da gente, que já vendia aqui, indicou esse ponto. Na época, Renato era do setor 1, aí teve aquele problema das licitações. Após sair de lá, conseguiu esse espaço no 2”, comentou Rosilene.
A retirada dos espaços ocupados para trabalho seja por parte de fiscais do governo ou por ameaças sofridas por comerciantes da região é uma dificuldade encontrada por muitos que trabalham nas ruas. Outro fator presente é a irregularidade nas vendas, Renato e Rosilene precisam considerar os períodos de férias da UFRN e criar estratégias para a manutenção da renda nesses intervalos de tempo, já que é o único meio de sustento da família. “A gente levanta entre seis e seis e meia da manhã faz a produção caseira dos acompanhamentos do açaí: mousse, coco queimado, brigadeiro, beijinho, essas coisas. Chegamos no campus por volta das onze e meia da manhã e saímos às nove e vinte e cinco da noite. Passamos no Atacadão para fazer algumas compras, às vezes ‘vamos em mãe’ buscar a filha e no final da noite estamos em casa”, narra Rosi.
Os dois reconhecem que o trabalho é desgastante devido às condições naturais (sol, vento e períodos chuvosos) que enfrentam, além da presença de alguns insetos, como as abelhas. São mais de 15 horas do dia dedicados ao trabalho, que se comparadas às 8 horas propostas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) expressam o cansaço e esforço para fazer o negócio dar certo e futuramente ter o próprio comércio fixo.
Partindo de uma iniciativa semelhante, o potiguar David Souza e a fluminense Thaís Gomes, ambos de 26 anos de idade, há mais ou menos seis meses vendem quentinhas na esquina do colégio Hipócrates Zona Sul, no bairro da Candelária. Após passar por uma fase delicada da vida, os dois decidiram levar adiante o projeto de trabalhar na rua. “A gente se inspirou em um casal que estava vendendo comida próximo ao Nordestão da Roberto Freire. Queríamos almoçar e estava tudo fechado, mas aí encontramos eles vendendo daquela forma (…) paravam o carrinho ali, como ambulantes mesmo, e vendiam”, disse o casal.
À reportagem, David contou que, de início, os dois não se planejaram o suficiente para as vendas. “Inicialmente, nossa ideia era de parar em algum canto e tentar vender. Se o movimento tivesse fraco, íamos para outro local”. Após dar uma volta por pontos estratégicos do bairro, o casal decidiu se fixar próximo à escola devido ao grande fluxo de alunos e pais durante o horário de almoço. “No primeiro dia, a gente levou vinte quentinhas e vendemos apenas três. Sabíamos que ia ser difícil, mesmo assim continuamos. No dia seguinte, levamos menos e vendemos mais, mas isso é relativo”, contou David.
Entre os desafios de trabalhar na rua, o casal percebeu que o preconceito é um dos pontos a enfrentar. “A gente sentiu, e sente, muito preconceito das pessoas de comer na rua, da comida que tá dentro de um isopor. As pessoas de carro não costumavam parar”, desabafou David. Outro fator mencionado foi a valorização do trabalho. “Começamos a entregar cartões pequenos com nosso nome e número para reservas através do Whatsapp, mas às vezes o pessoal ignora o que tá ali, e acaba se chateando quando vai procurar a gente e não tem mais marmita”, explicou Thaís.
Apesar de incentivos da clientela o casal chegou a ser ameaçado por um dono de restaurante da rua em que vendem. “Ele falou que a gente ia ter que fazer cartel, igualar nossos os preços aos dele. Eu falei que não pratico isso”, contou o vendedor. No entanto, as ameaças não pararam por aí. O concorrente também ameaçou colocar uma venda ao lado ou por um carro na frente do local. A diferença de preço entre os dois é de R$ 2.
A rotina de produção e vendas ocorre de segunda à sexta, a partir do começo da manhã até mais ou menos o início da tarde. Thaís acorda cedo para preparar as proteínas, saladas e acompanhamentos, além de cuidar da filha de dois anos e seis meses de idade. David auxilia na montagem dos pratos, logística e entrega de pedidos. Depois de vender as últimas porções, o casal se prepara para sair do local e buscar a filha na creche.
Devido às condições atuais do mercado de trabalho, David tem mais de uma renda. Além de auxiliar Thaís na venda das marmitas, ele também trabalha como técnico de informática e motorista de transporte por aplicativo. Recentemente, trancou o curso de Engenharia Elétrica na UFRN para se dedicar a outras funções.
A rotina dos dois casais ilustra os desafios e dificuldades enfrentados por aqueles que precisam ocupar os espaços públicos, se inserir no mercado de trabalho e garantir o sustento familiar.
Venda nas ruas como complemento de renda
O trabalho nas ruas da cidade servem de fonte de renda única para boa parte dos trabalhadores, mas para alguns é a maneira encontrada de complementar um salário ou benefício insuficiente. Esse é o caso de Raimundo Cunha, de 90 anos, servidor aposentado da UFRN que vende cocada e bolos artesanais no Centro de Convivência da Universidade. “É uma mixaria, hoje em dia não dá pra nada”, reclama Raimundo sobre a aposentadoria.
O agora vendedor entrou na Universidade em 1978 e desde esse período já costumava levar doces para o trabalho. Com a aposentadoria, passou a ocupar um pequeno espaço no Centro de Convivência da instituição, e lá permanece até hoje, salvo em 2016 quando foi removido por agentes da polícia por não ter participado de licitação. “Se tivesse fazendo coisa errada era outra coisa. Mas só vendo comida, e sempre estive aqui” explica Raimundo.
As vendas no Campus são a segunda fonte de renda também para José Rubens de Souza, de 59 anos, que é auxiliar de laboratório trabalhando com primatas no Centro de Biociências da UFRN e às tardes vendedor de pipoca. Com uma infância difícil trabalhando na roça com seus avós, foi somente com o trabalho na Universidade que conseguiu juntar dinheiro para a compra de um carrinho de pipoca. “Lá no interior que eu morava, tinha um senhor que vendia pipoca, só aos domingos, (…) E aquilo nunca saiu da minha memória, de fazer pipoca”, relembra Rubens.
Apesar de atualmente estar fixo no Centro de Convivência da UFRN, ele se considera um ambulante, pois iniciou suas vendas em frente a uma churrascaria no bairro Nordeste, onde morava. “Vendi por muitos anos. Fiz muitas amizades. Gente boa e gente ruim que tem tudo misturado”, contou o pipoqueiro.
Os perigos de trabalhar na rua são muitos, assalto, violência e até mesmo dificuldades com o clima, como chuva ou sol excessivo, mas mesmo assim Rubens olha com carinho para sua vida de ambulante e diz que trabalhar na rua para ele significa fazer amizades. Quando questionado sobre o que já presenciou ele lembra “Na rua eu já vi de tudo, as pessoas me perguntam se eu vi algo e eu digo que não. É igual onde eu trabalho, cheiro de macaco a gente nem sente mais”.