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Nove anos após ficar tetraplégico, jornalista lança site para falar sobre direitos da pessoa com deficiência

Rafael Ferraz Carpi passou por consultoria sobre finanças pessoais antes de lançar o site Jornalista Inclusivo, do qual é editor | Foto: Divulgação

O ano era 2011 e o jornalista Rafael Ferraz Carpi trabalhava como assessor de imprensa em uma produtora. O emprego veio depois de uma maratona que começou ainda no primeiro ano de faculdade, em 2002. Rafael já tinha trabalhado como repórter de rua em uma rádio e também no principal jornal de Itu (SP), cidade onde vive desde criança. Neste período, ele costumava tocar na noite. Quando se formou, em 2006, o jornalista decidiu dar uma guinada na carreira. Pediu demissão do jornal e foi trabalhar como fotógrafo em um navio. Viajou pela costa brasileira até o Uruguai. Ficou 3 meses na Europa e depois emendou trabalhos em mais dois navios. Nesse meio tempo, Rafael nunca deixou de circular pelas redações de Itu.

Naquele fatídico 2011 o jornalista estava em plena atividade, no auge dos seus 27 anos. Um dia, ele foi até a casa da ex-namorada. Era um espaço dividido em três andares, com uma escada larga, em formato de caracol. Lá, além de Rafael e da ex-namorada, estava também um casal. Não se sabe como. Ninguém viu. Mas em um determinado momento o jornalista caiu da escada. No acidente, ele fraturou a quinta vértebra cervical. Rafael ficou vinte dias em coma. Foram quatro meses de internação. Ao voltar para casa, o jornalista enfrentou mais um mês de tratamento domiciliar. A esta altura, obviamente, Rafael já sabia o diagnóstico: tinha ficado tetraplégico.

“O processo de recuperação foi lento”, recorda.

A vida do jornalista virou de ponta à cabeça. Ele havia perdido os movimentos dos braços, tronco e pernas. Dali em diante, cada ação, mesmo que automática, deixaria marcas, como a que ele carrega no pescoço, resultado de um procedimento cirúrgico para manter o funcionamento da musculatura respiratória. “Tive que passar por uma traqueostomia para poder respirar”, conta.

Rafael deu início ao processo de reabilitação. Foram inúmeras sessões de equoterapia (terapia com cavalos) e fisioterapia, interrompidas este ano por causa da pandemia. O jornalista nunca se acomodou. Para superar as próprias limitações, resolveu se aventurar e saltar de paraquedas, poucos anos após o acidente.

“A sensação foi maravilhosa, indescritível. Na verdade, só senti medo na hora em que a portinha do avião se abriu e o instrutor falou: vamos! (risos). Eu olhei para baixo e pensei: meu Deus, o que eu estou fazendo?”

Rafael saltou de paraquedas poucos anos após ficar tetraplégico | Foto: Acervo pessoal

Anos depois, em uma viagem a Fortaleza (CE), Rafael conheceu um projeto que utilizava cadeiras anfíbias para permitir o acesso de pessoas com deficiência ao mar. Essas cadeiras possuem rodas especiais para deslocamento na areia e também na água. São equipadas com cinto de segurança, apoio cervical para a cabeça, além de apoio para os pés. O contato com o mar teve sabor de reencontro para o jornalista. “Foi a primeira vez que eu fui à praia depois que fiquei tetraplégico. Foi espetacular”, relembra. Todas essas experiências foram compartilhadas por ele em seu canal, no YouTube.

Contudo, Rafael, hoje com 36 anos, tinha o desejo de fazer mais do que dividir com as pessoas os desafios que conseguiu superar. E foi a partir desse desejo que, em junho deste ano, ele tirou do papel o projeto Jornalista Inclusivo, um espaço para “compartilhamento de notícias, reportagens, artigos, entrevistas e todo tipo de conteúdo informativo”, direcionados a pessoas com deficiência. Isso porque, desde 2017, o jornalista já havia criado uma página no Facebook para falar sobre questões relacionadas ao tema.

“Fiz toda a montagem do site, desde o layout até o conteúdo. Também cuido do editorial e assino como editor responsável. Faço as artes, as edições de texto e algumas entrevistas. Acompanho toda a parte jornalística e conto com a participação de alguns parceiros nesse processo”, explica Rafael. Para pôr o projeto em prática, ele contou com uma consultoria desenvolvida pela educadora financeira, Cláudia Medeiros.

Logo do site Jornalista Inclusivo | Imagem: Divulgação

“A tetraplegia mudou toda a minha vida e eu tive que me adequar. Então, o Jornalista Inclusivo nasceu nessa levada, de unir o útil ao agradável – minha condição física e minha formação acadêmica. Procuro passar para as pessoas as informações que eu busquei quando fiquei tetraplégico. E aí, nós falamos de qualquer outra deficiência, porque a gente acaba entrando para o time dos ativistas da causa”.

Rafael Ferraz Carpi
Editor do site Jornalista Inclusivo

Para criar conteúdo, o jornalista conta com algumas parcerias. São profissionais de diferentes áreas (música, comunicação e esporte, moda, entretenimento), além de um time de especialistas, formado por uma advogada, uma psicóloga e uma fisioterapeuta. Parte da equipe é composta por pessoas com deficiência, assim como Rafael. O grupo chamou para si a responsabilidade de promover inclusão, informar sobre direitos, divulgar oportunidades de emprego, dentre outras pautas ligadas à causa. Um trabalho inspirador. E árduo. “De junho para cá eu tenho trabalhado todos os dias, de segunda a segunda, das 10h às 22h. E ainda há muito o que fazer”, admite Rafael.

“Anjo”

Rafael e Cláudia não se conhecem pessoalmente. Eles estão separados por quase 3 mil km de distância. O jornalista vive em Itu, no interior paulista, e Cláudia, em Caicó, município do Seridó potiguar. Além de educadora financeira, ela é formada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professora da rede estadual de ensino.

O contato entre os dois acontece via internet desde o começo. Após participar de um sorteio no Instagram de Cláudia, Rafael foi premiado com uma consultoria sobre educação financeira. O processo durou mais de um mês, de forma virtual. “Fiz com o Rafael um processo voltado para a criação de uma renda extra. Mostrei que, mesmo com as limitações, ele era um jornalista que podia se reinventar”, explica Cláudia.

“Sou aposentado por invalidez e fazia alguns bicos como profissional liberal. Trabalhava com produção de conteúdo, atualização de sites e redes sociais para outras empresas, mas sempre relacionado à acessibilidade e inclusão. Para poder tocar o site, abri mão dos bicos que fazia”, diz o jornalista ao falar sobre as mudanças que adotou na rotina para conseguir se dedicar ao projeto.

A Cláudia me ajudou nesse processo de me organizar financeiramente. Ela foi essencial, porque me deu dicas sobre finanças, mas também sobre como tocar um projeto de vida. Muito provavelmente se eu não tivesse passado por essa experiência com ela, ainda ia estar com medo de fazer o site”. A parceria, mesmo a distância, se fortaleceu.

“Oi, anjo. Tudo bom? Demorei, mas tirei o projeto do papel (…). Obrigado por ter me encorajado, ter me mostrado que sou capaz”.

Rafael, em agradecimento a Cláudia após o lançamento do site

“A gente se fala pelas redes sociais. Se eu tiver a oportunidade de ir até o Rio Grande do Norte, eu vou fazer questão de conhecê-la, porque já é uma grande amiga. Ela também é uma pessoa com deficiência, então, o foco [para criação do site] foi bem nesse aspecto de eu me sentir seguro para conseguir colocar em prática o que eu precisava”, destaca Rafael.

Cláudia tem 39 anos. Ela nasceu com siringomielia, patologia que ocorre quando um ou mais cistos se enchem de líquido (siringe) e se desenvolvem na área central da medula. Os cistos geram fraqueza muscular. Por isso, Cláudia, que possui um desvio na coluna, não anda. O diagnóstico sobre a doença só veio em 2004, aos 23 anos, quando ela já estava na faculdade. O interesse pelas finanças veio depois, em 2014, após uma situação nada agradável.

Cláudia é professora da rede estadual de ensino e educadora financeira | Foto: Acervo pessoal

“Eu estava com dinheiro parado na conta, então, fui ao banco ver o que podia fazer. Lá, aceitei tudo o que a gerente me ofereceu, porque eu não entendia nada daquilo. Depois de um tempo, eu descobri que estava perdendo dinheiro com aqueles investimentos. Inclusive, uma das minhas aplicações, na verdade, não era um investimento, era um título de capitalização”.

O episódio narrado por Cláudia ocorre com mais frequência do que se imagina. A falta de conhecimento sobre como administrar o próprio dinheiro atinge grande parte da população brasileira. Este ano, uma pesquisa do Ibope encomendada pelo C6 Bank, apontou que apenas 21% dos brasileiros tiveram educação financeira na infância. E, deste total, 45% não compartilham ou passam poucas informações sobre o tema para os filhos (veja detalhes da pesquisa nos gráficos abaixo). Cláudia, por exemplo, nunca tinha ouvido falar no assunto até aceitar as ofertas “generosas” da gerente do banco.

“Até aquele momento, a única coisa que eu sabia sobre saúde financeira tinha sido de minha mãe, que me deu uma dica simples, mas eficaz: nunca gastar mais do que ganhava”.

A dica é valiosa, mas não o suficiente para evitar ciladas. A professora, então, sentiu que precisava conhecer o assunto com maior profundidade. Foi aí que ela decidiu fazer um curso na área de finanças. Não sem antes fazer pesquisas em livros, leituras de artigos e consumir muito conteúdo na internet, especialmente vídeos. Cláudia afirma que a deficiência nunca foi um obstáculo para aprender sobre finanças pessoais, mas revela que já passou por uma situação desagradável.

 “Certa vez, eu estava numa conversa longa com a gerente do meu banco e notei que o gerente geral passou algumas vezes perto da mesa dela, com a cara feia, como se tivesse desaprovando aquilo. Mas não dei muita importância ao fato. Imaginei que era algum problema interno. Fui embora e aquele episódio passou”, relata.

“No outro dia recebi um telefonema da gerente. Ela me pediu desculpas pelo comportamento do colega e contou que ele a chamou depois e perguntou o porquê da demora em me atender. Ou seja, era como se ele achasse que eu não tinha condições de ser uma cliente daquele banco. Fiquei chocada”

Cláudia Medeiros
Professora e educadora financeira

Educação financeira e acessibilidade

O último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 apontou que o Brasil possui mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência.

Em 2018, o IBGE revisou os dados por meio de uma nova metodologia. Assim, de acordo com a revisão, em 2010 o país tinha 32,8 milhões (17,2%) de pessoas com limitação funcional (PLF); e, 12,7 milhões (6,7%) de pessoas com deficiência (PcD).

Ainda segundo o IBGE, pessoas com limitação funcional são aquelas que “declararam ter apenas ‘alguma’ dificuldade para enxergar, ouvir e/ou andar/subir escadas”. Já as pessoas com deficiência são aquelas “que disseram ter ‘total’ ou ‘grande’ incapacidade para enxergar, ouvir e/ou andar/subir escadas, somadas àqueles que assinalaram ‘sim’ quanto à ‘deficiência intelectual/mental”. A revisão foi feita com base no censo demográfico de 2010 e na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013.

De acordo com a Lei 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, a qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com os demais”.

A LBI, aprovada em 2015, assegura às pessoas com deficiência o direito à educação “em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”.

Para a professora e advogada, Catarina Sousa, um dos avanços representados pela LBI foi a construção de uma nova maneira de abordar o tema, onde a deficiência não está na pessoa e sim, no ambiente. Catarina explica que a lei traz empoderamento às pessoas com deficiência em diferentes aspectos. A educação financeira, segundo ela, é um fator importante para essa independência, porque são pessoas que precisam administrar bem as contas para suprir demandas como terapia e outros tratamentos de longo prazo.

Para Rafael, outro ponto deve ser lembrado. “Quando você adquire uma deficiência ou já nasce com ela, além dos gastos direcionados à saúde, muitas vezes é preciso um advogado para conseguir na Justiça o seu direito a tratamento”, comenta o jornalista.

Mas, de fato, como a inclusão de pessoas com deficiência deve ocorrer no âmbito da educação financeira? Para encontrar as respostas, é preciso conhecer as limitações desse público. Cláudia, por exemplo, já enfrentou dificuldades para ir a uma agência bancária. “Durante muito tempo para eu poder chegar ao banco era o maior problema, porque não existia elevador nesses locais e, mesmo hoje em dia, algumas agências ainda têm problemas de acessibilidade. Uma vez, atendi uma pessoa com deficiência visual e ela me contou que sente dificuldade em fazer investimentos porque sua corretora de valores não tem acessibilidade”.

Catarina Sousa, que também é presidente da Comissão da Pessoa com Deficiência, explica que essas diferentes necessidades precisam ser levadas em consideração, para atender aos parâmetros da LBI. “A lei traz a pessoa com deficiência como prioridade dentro de um contexto biopsicossial. Portanto, tudo aquilo que, de alguma forma, possa trazer transtornos para esse público, no aspecto de impedir o empoderamento e a ascensão financeira, é um contexto que não é abraçado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (a LBI)”.

Segundo Catarina, para garantir inclusão, na prática, as ações precisam contemplar todas as necessidades. “A acessibilidade à informação é fundamental. Muita gente não sabe, por exemplo, que a Lei 989/95 garante isenção de impostos, como o IPI, para pessoas com deficiência. Mas inclusão não é só isso. É também uma escola que deve desenvolver um ambiente pedagógico para crianças com autismo ou síndrome de Down; um ônibus com espaço adequado para que o cadeirante possa sentar; ou um ambiente adaptado para uma pessoa com dificuldade em ouvir, dentre outras situações”.

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