Esporte
Jogar como 82 ou ganhar como 94?
Símbolos de épocas opostas do futebol brasileiro, Zico e Mauro Silva analisam o legado de suas equipes
Com um meio-campo estupendo, movido pela inventividade de Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, a seleção brasileira de Telê Santana encantou o mundo durante a Copa de 1982, sediada na Espanha, mas caiu em uma dolorosa derrota para a Itália na segunda fase. Já a equipe de 1994, regida pelo faro goleador de Romário e a batuta de Carlos Alberto Parreira, conseguiu dar um título mundial ao Brasil após mais de duas décadas de jejum. Porém, no imaginário de muitos, não é lembrada com o mesmo carinho que o esquadrão de craques capitulado pela tragédia do Sarriá. Um time fascinou e perdeu. O outro ganhou sem arrebatar corações. Entre o brilhantismo e o pragmatismo que separam as duas gerações, está a seleção de Tite, que disputa as oitavas de final contra o México nesta segunda-feira.
Por enquanto, na Copa da Rússia, o Brasil demonstrou mais da objetividade do time de Parreira que a magia consagrada pelos homens de Telê. Mas Tite nunca escondeu que a grande miragem para sua seleção é o jogo ofensivo e criativo de 36 anos atrás. “A beleza daquele time em campo era de emocionar as pessoas”, disse o técnico no dia de sua apresentação. Ainda assim, o comandante sempre evitou eleger um modelo favorito entre 82 e 94. Contudo, baluartes das duas gerações ouvidos pelo EL PAÍS entendem que a seleção atual carrega virtudes de ambos os lados.
Para Zico, camisa 10 no Mundial da Espanha, a mescla de estilos se faz visível nas extremidades do time. “Não gosto de comparações. Mas o Tite conta não só com uma parte defensiva sólida, mas também com jogadores de muita qualidade na frente, como Neymar, Philippe Coutinho e Gabriel Jesus. Ele adotou uma filosofia de jogo que potencializa o talento desses atletas”, diz o Galinho. Já o volante tetracampeão Mauro Silva enxerga em Casemiro um reflexo do marcador implacável que ele encarnou em 94 e, no restante da equipe, um pouco do futebol-arte que o levou às lágrimas. “Eu chorei em 82 quando perdemos a Copa”, lembra. “Hoje o Brasil alcançou o meio-termo. É uma equipe muito equilibrada, com poderio ofensivo e defensivamente estável. Tem a cara do Tite.”
Mauro explica que a abordagem conservadora do time do tetra não nasceu por acaso. A seleção havia perdido sua dupla de zaga titular, Ricardo Gomes e Ricardo Rocha, lesionados. Parreira, então, recorreu a uma formação inédita, com Aldair e Márcio Santos, que só ganhou entrosamento ao longo do torneio. “O Parreira me pediu para ficar próximo deles o tempo todo, porque era uma dupla nova. Minha principal função era proteger a defesa. A gente queria evitar sofrer o primeiro gol, porque o lado emocional pesa muito em uma Copa do Mundo. Não existe margem para recuperação.”
O Brasil de 82 bem que tentou se recuperar. Buscou duas vezes a desvantagem no placar contra a Itália, mas sucumbiu depois do terceiro gol marcado por Paolo Rossi. “Nós perdemos porque encontramos um adversário que soube aproveitar nossos erros. E ganhou merecidamente”, avalia Zico. “Copa do Mundo é isso: num dia ruim, você volta pra casa. A filosofia do treinador de 94 era uma, a do treinador de 82 era outra. Tem que saber o que tá disputando. Não tenho dúvidas de que se aquela seleção disputasse um campeonato de pontos corridos, todos contra todos, dificilmente ia perder. É raro uma equipe tão boa errar tantas vezes como nós erramos.”
De acordo com Mauro Silva, a tragédia do Sarriá, de certa maneira, serviu de exemplo para o Brasil de Dunga, Romário e companhia. “Se tivesse um pouquinho mais de equilíbrio defensivo, a seleção ganharia a Copa do Mundo em 82”, afirma o ex-volante. “Era um time incrível. Mas é preciso aprender com os erros. Em uma Copa, a solidez na defesa é muito importante. Sem isso, um time raramente vence um campeonato de tiro curto.”
Na campanha do tetra, a seleção sofreu apenas três gols – um contra a Suécia, na fase de grupos, e dois contra a Holanda, nas quartas. O time ganhou ainda mais consistência quando Parreira barrou Raí e promoveu a entrada de Mazinho após a primeira fase. “Ficamos com três volantes”, explica Mauro. “Um meio-campo muito compacto. Mas nosso único armador era o Raí. Não tínhamos outro jogador com as características de criação para servir Romário e Bebeto. Imagina se a gente tivesse um Djalminha no grupo? Perdemos poder criativo e ficamos mais engessados, mas, por outro lado, consolidamos de vez o sistema defensivo.”
Disputado no verão dos Estados Unidos, a Copa de 1994 registrou temperaturas acima de 40 graus, já que muitas partidas eram realizadas no meio do dia para privilegiar a cobertura de televisão ao redor do mundo. A final contra a Itália, que começou às 12h30, em Pasadena, na Califórnia, foi uma delas. Outro fator que, para Mauro Silva, condicionou a seleção a não cair na tentação de sufocar os adversários, embora tivesse mais posse de bola que a maioria – só perdeu nesse quesito para a Holanda. “A gente precisava administrar o esforço. O calor não favorecia a intensidade. Tanto que nosso melhor jogo foi em Dallas [contra os holandeses], com tempo nublado e mais agradável para praticar futebol.”
Na partida contra o México, em Samara, na Rússia, a seleção de Tite deve encarar uma temperatura ao redor dos 35 graus e o menor índice de umidade deste Mundial, algo que influenciou na decisão do treinador ao trocar Marcelo, que se recuperou de uma lesão nas costas, por Filipe Luís. Assim como o Brasil de 94, seu time somou sete pontos, teve mais posse de bola que todos os adversários e sofreu apenas um gol na fase de grupos. Mas também apresentou lampejos de criatividade e improviso, como nas aproximações de Neymar e Coutinho contra a Sérvia, a exemplo da seleção de 82 – que marcou 10 gols em seus três primeiros jogos na Copa, o dobro da equipe atual.
Credenciais que fazem Zico confiar na disputa pelo hexa até o fim. “Se continuar jogando assim, o Brasil certamente vai chegar à final.” Para o eterno craque e quarto maior artilheiro da seleção, o escrete de rara profusão de talento que integrou em 82 ficou marcado não só por simbolizar a essência do futebol canarinho, mas, sobretudo, por influenciar outras escolas tradicionais. O colombiano Juan Carlos Osorio, técnico do México, por exemplo, já disse em algumas oportunidades se inspirar no time de Telê. “Não conseguimos o título, mas tivemos nosso desempenho reverenciado no mundo inteiro. Pelo futebol que a gente jogava, até os espanhóis passaram a apoiar o Brasil naquela Copa. Como afirmou o Guardiola, nosso time serviu como uma inspiração para as futuras gerações da Espanha. A seleção campeã em 2010 resgatou um pouco do toque de bola que impusemos em 82.”
Mauro Silva, por sua vez, avalia o legado da geração de 94 como um desafogo para o país, que não ganhava uma Copa havia 24 anos. Hoje, 24 anos depois do tetra, o ex-volante se diz orgulhoso da pragmática, porém redentora seleção que vingou o Brasil justamente contra a Itália. “É preciso ser justo ao avaliar aquela seleção. Soubemos administrar uma pressão enorme, de muito tempo sem ganhar. O pragmatismo foi importante e necessário naquele momento. Depois do tetra, o futebol brasileiro ganhou mais tranquilidade, tanto que chegou à final em 98 e foi campeão novamente em 2002. Nossa sociedade precisa valorizar mais a dedicação e o esforço. Temos uma história rica em talentos, drible e individualidade, mas só isso não basta para construir uma equipe vencedora.”