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Opinião

Às mulheres antes de mim

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Foto: Laura Santos

O relógio da casa da minha avó badala. A cada hora um blang, blang, blang, com o número de batidas exato ao número de horas, às 12h, é quase infinito. Quando eu dormia lá, ainda pequena, o sono demorava a chegar aos meus olhos. Minha infância inteira tive dificuldades para dormir em outras casas, não era medo, nem nada, talvez fosse só a euforia de estar em um lugar novo. Por mais conhecido que ele me fosse durante o dia, à noite me era estranho. Eu conseguia saber a hora aproximada do fim da minha insônia, por lembrar da última vez em que os blangs ecoavam em minha cabeça.

Foto: Laura Santos

Eu gostava do barulho, admito, sei que ele não agrada a todos. Se durante a noite era a minha companhia, para outros era o susto que despertava na madrugada. Em casa de vó, tudo parece ter vindo de outra vida. Esse relógio com certeza tem mais décadas do que eu. Coisas assim, já não se fabricam mais. Será que um dia os nossos modelos digitais terão gosto de vida passada para alguém?

Foto: Laura Santos

Imagino a casa da minha bisavó, no século anterior, mais longe ainda em tempo, em algum lugar do interior. Plantando e vivendo da terra, ao lado do meu bisavó, que certamente se decepcionaria com essa bisneta, que pouco sabe sobre o cuidar com as mãos da terra. Tentando não afogar ou secar demais as plantas, pouco sabe sobre a sobrevivência. 

Foto: Laura Santos

Dormindo com o barulho da escuridão, lugar onde deita-se cedo e se acorda mais cedo ainda. Onde hábitos são difíceis demais de se mudar. O suor escorre do rosto e molha a terra tanto quanto a chuva caindo, quantas árvores tem suas digitais? E quantas eu já toquei? Se um pássaro um dia trouxe uma semente sua, ou o vento as arrastou até onde eu já pisei e mesmo não conhecendo os meus antepassados, eu posso ter tocado os seus frutos.

Foto: Laura Santos

Será que enquanto eu espero a chuva chegar sinto o mesmo que as mulheres que deram o nome da minha mãe sentiam? O Sol que marcava as suas peles, tem marcado a minha da mesma maneira? E os sinais que aparecerão com os anos ocuparão os mesmos terrenos do meu corpo que ocupavam nos delas? Em uma junção que aparenta cores de galáxias, tantos quanto os sinais da minha avó, ou as sardas da minha mãe? Somos mulheres unidas pela terra, Sol e sinais do tempo em nossos ombros?

Foto: Laura Santos

Todo este tempo eu estive pensando em nós como uma só, de alguma maneira, mesmo separadas, mesmo que meu sangue B+ em nada coincidisse com os seus. Estaria tudo bem, ninguém precisaria dizer se era verdade ou não. Porque no meu interior, que não é o interior da minha mãe, nem o da minha avó, ou bisavó, eu sei que somos partes umas das outras, de alguma forma.

Foto: Laura Santos

E se o relógio da minha avó badala todas as vezes que me vê, eu sei que o mundo se agitou com a existência de todas as forças que vieram antes da minha. Então não, talvez os meus relógios digitais não sejam iguais aos delas, mas sempre terei o ritmo de outras vidas para levar a minha frente, deixando também o meu. Para que sejamos uma, mesmo distintas, acrescentando o nosso tempo particular, crescendo umas com as outras e mudando por não sermos iguais. 

Porque eu gosto do jeito que eu me olho nos olhos das minhas ancestrais. E de todas as partículas delas que gravitam em torno das órbitas da minha retina. 

Este texto é uma parceria com a Quando Nuvem

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